quinta-feira, 13 de outubro de 2011

ALETRIA E HERMENÊUTICA

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo : riscado, deflagrado, foi-se a serventia.
Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde os sentido de gracejo, de dom sobrenatural , e de atrativo. No terreno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária : tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento. Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de desempenhos : donde, e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva - demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato - a qual, a grosso , de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de : anedotas de abstração. Serão essas - as com alguma coisa excepta - as de pronta valia no que aqui se quer tirar : seja, o leite que a vaca não prometeu.
Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins : e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida tambem é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”.
Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguem lhe grita : - ”Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!... “Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase ... e exclama : - “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...”
Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito.
De análogo pathos, balizando posição-limite da irrealidade existencial ou de estática angústia
- e denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-giz-de-prender-peru - será aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu : - “Trocar... com quem?”
Menos ou mais o mesmo, em ethos negativo, verseja-se na copla :
“Esta si que es calle, calle;
calle de valor y miedo,
Quiero entrar y no me dejan,
quiero salir y no puedo.”

Movente importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente - e de modo novo original - a busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude primordiais) é o caso do garotinho, que, perdido, na multidão, na praça, em festa de quermesse, se aproxima de um poliícia e, choramingando indaga: __ “Seu guarda, o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu?!”
Entretanto - e isso concerne com a concepção hegeliana do erro absoluto? - aguda solução foi a de que se valeu o inglês, desesperado já com as sucessivas falsas ligações que o telefone lhe perpetrava : - “Telefonista, dê-me, por favor, um “número errado” errado...”
Sintetiza em si, porém, próprio geral, o mecanismo dos mitos - sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o incogniscível - a maneira de um sujeito procurar explicar o que é o telégrafo-sem-fio:
- “Imagine um cachorro basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e aponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça, no Rio, pega a latir...”
- “E é isso o telégrafo-sem-fio?”
- “Não. Isso é o telégrafo com fio. O sem-fio é a mesma coisa ... mas sem o corpo do cachorro.”
Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por sequência de operações substrativas, nesta outra, que é uma definição “por extração” __ “O nada é uma faca sem lâmina , da qual se tirou o cabo...” (Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra a idéia do “nada absoluto”: “... porque a idéia do objeto “não existindo” é necessariamente a idéia do objeto “existindo”, acrescida da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual tomada em bloco.” Trocado em miudo : esse “nada” seria apenas um ex-nada, produzido por uma ex-faca.)
Ou - agora o motivo lúdico __ fornece-nos outro menino, com sua tambem desitiva definição do “nada”: __ “É um balão , sem pele...” E com isso está-se de volta à poesia, colhendo imagens de eliminação parcial, como exemplo à mão, as estrelas, que no “Soir Religieux”de Verhaeren:
“Semblent les feux de grands cierges, tenus en main,
Dont on n’aperçoit pas monter la tige immense.”
Ou total, como nesta “adivinha”, que propunha uma menina do sertão - “O que é, o que é : que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente morta come, e se a gente viva comer morre?” Resposta: __ “É nada.”
Com o que, pode o pilheriático efeito passar a drástico desilusionante.
Como no fato do espartano - nos Apophthégmata lakoniká de Plutarco - que depenou um rouxinol e, achando-lhe pouca carne, xingou: - “Você é uma voz, e mais nada!”
Assim atribui-se a Voltaire - que, outra hora, diz ser a mesma amiúde “o romance do espírito” - a estrafalária seguinte definição de “Metafísica” : “É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um gato preto ... que não está lá.”
Seja quem seja, apenas o autor da blague não imaginou é que o cego em tão pretas condições pode não achar o gato, que pensa que busca, mas topar resultado mais importante - para lá da tacteada concentração. E vê-se que nessa risca é que devem adiantar os koan do ZEN.
E houve mesmo a áquica e eficaz receita que o médico deu a cliente neurótico : “R. / Uso int. / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa repetita, 20 c.c. / Eadem stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q.s.”
Tudo portanto, o que em compensação vale* é que as coisas não são em si tão simples, se bem que ilusórias. “O erro não existe : pois que enganar-se seria pensar ou dizer o que não é, isto é : não pensar nada, não dizer nada” - proclama genial Protágoras; nisto, Platão é do contra, querendo que o erro seja coisa positiva ; aqui, porém, sejamos amigos de Platão, mas ainda mais amigos da verdade; pela qual, aliás, diga-se, luta-se ainda e muito, no pensamento grego. *
Ainda uma adivinha “abstrata, de Minas : “O trem chega às 6 da manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista? “ (Porque é o sol.) Anedótica meramente.
Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem : velocidade horária, pontos de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina :
- “Qual é o nome do maquinista?”
Sem resposta, só ardilosa, lembra célebre koan : “Atravessa uma moça a rua : ela é a irmã mais velha ou a caçula? Apondo a mente a problemas sem saída, desses, o que o zenista pretende é atingir o satori, iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções.
Ao passo que a nada, ao “nada privativo”, teve aquele outro, anti-poeta, de reduzir a girafa, que passava da marca : - “Você está vendo esse bicho aí? Pois ele não existe!...” __ como recurso para sutilizar o excesso de existência dela, sobre o comum, desimaginável. Dissesse tal : - Isto é o-que-é que mais e demais há, do que nem não há...
Ora, porem, a idêntica niilificação enfática recorre Rilke, trazendo, de forte maneira, do imaginário aoreal, um ser fabuloso, que preexcede
- o Licorne: “Oh, este é o animal que não existe...”
Todavia desdeixante rasgo dialético foi o do que, ao reencontrar velho amigo, que pedia-lhe o segredo da aparente e invariada mocidade, respondeu: - “Mulheres...”__ e após suspensão e pausa : - “Evito-as...!”
Tudo tal a “hipótese de trabalho”na estória dos soldados famintos que ensinavam à velha avarenta fazer a “Sopa de Pedra”. Mistura tambem a gente interina clara de ovo ao açucar a limpar-se no tacho; e junta folhas de mamoeiro e bosta de vaca à roupa alva sendo lavada.
Remite-se a mulher. Omita-se igual o homem. Ora. Que o homem é a sombra de um sonho, referia Pindaro, skias ónar ánthropos; e __ vinda de outras eras... - Augusto dos Anjos.
Mas reza pela erística o capiau que, tentando dar a outro idéia de uma eletrola, em fim de esforço, se desatolou com esta intocável equação : __ “Você sabe o que é uma máquina de costura? Pois a vitrola é muito diferente...”
Corolário em não-senso : O que respondeu o anspeçada, em exame para sua promoção a cabo-de-esquadra: __ “Parábola? É precisamente a trajetória do vácuo no espaço.”
Nem é nada excepcionalmente maluco o gaio descobrimento do paciente que, com ternura, Manuel Bandeira nos diz em seu livro “Andorinha, Andorinha”: “Quando o visitante do Hospício de Alienados atravessava uma sala, viu um louquinho de ouvido colado à parede, muito atento. Uma hora depois, passando na mesma sala, lá estava o homem na mesma posição. Acercou-se dele e perguntou : “Que é que você está ouvindo?”O louquinho virou-se e disse: “Encoste a cabeça e escute.”O outro colou o ouvido à parede, não ouviu nada : “Não estou ouvindo nada.”Então o louquinho explicou intrigado : “Está assim há cinco horas.”
Afinal de contas, a parede são vertiginosos átomos, soem ser. Houve já até, não sei onde ou nos Estados-Unidos, uma certa parede que irradiava, ou emitia por si ondas de sons, perturbando os rádio-ouvintes etc. O universo é cheio de silêncios bulhentos. O maluquinho podia tanto ser um cientista amador quanto um profeta aguardando se completasse séria revelação. Apenas, nós é que estamos acostumados com que as paredes é que tenham ouvidos, e não os maluquinhos.
Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco, até levá-los ao sublime: seja daí que seu entre-limite é tão tênue. E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao excelso.
Conflui, portanto, que :
Os dedos são anéis ausentes?
Há palavras assim: desintegração...
O ar é o que não se vê, fora e dentro das pessoas. O mundo é Deus estando em toda a parte.
O mundo, para um ateu, é Deus não estando nunca em nenhuma parte.
Copo não basta : é preciso um cálice ou dedal com água para as grandes tempestades.
O O é um buraco não esburacado.
O que é - automaticamente?
O avestruz é uma girafa; só o que tem é que é um passarinho.
Haja a barriga sem o rei. (Isto é : o homem sem algum rei na barriga.)
Entre Abel e Caim, pulou-se um irmão começado por B.
Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia.
A peninha no rabo do gato não é apenas “para atrapalhar”.
Há uma rubra ou azul impossibilidae no roxo (e no não roxo)
O copo com água pela metade : está meio cheio ou meio vazio?
Saudade é o predomínio do que não está presente, diga-se , ausente. Diz-se de um infinito - rendez-vous das paralelas todas.
O silêncio proposital dá a maior possibilidade de música.
Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo.


(Prefácio ao livro “Tutaméia”, de João Guimarães Rosa)

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