sábado, 7 de janeiro de 2012

Z

z z z z z z z z z z z z z z z
b z z z z z z z z z z z z z z
b i z z z z z z z z z z z z z
z z z z z z z z z z z z z e n
.........s i l ê n c i o .........
(Z . . . . . .. . . . . . . e n d)


Nem menos palestina
nem mais guerra fria
mais ou menos guerra santa

Paz - questão de ponto de vista
de longe - a terra é azul
de perto - você conhece
de fora - a paz do monge
dentro - uma guerra se esconde?

O cartão-postal do Rio oculta a guerra na favela
a floresta quieta não mostra o índio nem o pistoleiro
o lago tranquilo é onde mora o jacaré

Tele visão da Terra
Diáfana guerra - descanse em paz.

(Anibal Ji Po)

HANAMATUSRI


Festa da Lua Cheia de Maio

O príncipe Gautama Sidarta nasceu na India, no ano 563 A.C. , na lua cheia de maio. Segundo a lenda, sua mãe colhia flores quando deu à luz ao menino-Buda, havendo uma chuva de néctar celeste na hora do seu nascimento, razão porque essa ocasião é comemorada no Japão como o Festival de Flores ou Hanamatsuri. (O budismo tradicional considera esta data também como a da iluminação e morte do Senhor Buda.)

O Buda, após períodos de deleite dos sentidos e de vida austera, alcançou a iluminação após seis anos de meditação em silêncio sob a árvore Bodhi. Na madrugada, ao perceber a estrela da manhã, ele teve consciência da unidade de todas as coisas, que funde o princípio do buda interior que há em cada um de nós com a Mente Absoluta.

A sabedoria do budismo pode-se sintetizar na máxima : “Cessai de fazer o mal; aprendei a fazer o bem; limpai vosso coração; este é o ensinamento de todos os budas.”

Como realizar isso? O Buda apontava o Caminho do Meio. Tal qual um instrumento, as cordas não devem estar nem muito tensas, nem frouxas, mas simplesmente afinadas. “Tu mesmo hás de fazer o esforço; os Budas não fazem senão assinalar o caminho”


Estrelas, estrelas são flores de luz
Silêncio de Buda
Palavras de Jesus


(Rodrigo Leste/ Anibal Norte)

BASHÔ O ZEN

FUIU (INVERNO)

do orvalho
nunca esqueça
o branco gosto solitário
(Bashô)


Fria a estação da re-flexão. Do recolhimento. Da teoria. Da metalinguagem. Do pensar e do falar sobre.
Vamos pensar um pouco.
A força determinante na vida de Matsuô Bashô (sua forma) era uma coisa chamada zen.
O que é esse tal de zen? Boa pergunta.
Superficialmente, é uma das inúmeras seitas do budismo chinês, que começaram a aportar à ilha do Sol Nascente, a partir do século VIII, da nossa era.
Em termos de expansão geográfica (India, China, Birmânia, Tibete, Vietnã, Sião, Camboja, Coréia, Laos, Japão), brilhante a performance dessa idéia nascida de um príncipe do norte da India, que virou iogue, meditou no Parque dos Cervos, teve sua iluminação ao nascer do sol: a suprema intuição que o viver era Dor. E bem viver era trabalhar, com todos os seres vivos, para diminuir a Dor.
Sem dúvida: o mundo seria muito melhor, se fosse budista, a “religião” mais doce, mais humana, mais compassiva.
Matsuó Bashô foi monge budista. Um padre, como Gôngora. Ou Donne. Seus contemporâneos, todos grandes poetas.
Monge zen, nascido samurai, Bashô botou em prática, no haikai, a fé que alimentou sua alma, durante cinquenta vagabundos anos, com signos substaniciais.
Qual a doutrina dssa seita zen, afinal?
Longa a viagem da palavra sânscrita “dhyana”(=”meditação”), passando pelo chinês “Chang”, par virar “Zen”, no Japão; profunda a influência do zen, em toda a cultura japonesa (literatura, artes plásticas, teatro, arquitetura, vida diária).
Ao que tudo indica, o zen é uma variante do budismo (não há ortodoxia no budismo, no qual nunca houve heresias,Cruzadas nem Inquisição), como qualquer outra (Jodô, Nichiren, etc.).
Os vários ramos da seita (Rinzai, Sotô) mantêm mosteiros, como na Idade Média européia, foram centros importantes, possuindo terras e exercendo considerável papel econômico, social e cultural.
Que aprendiam nos mosteiros zen?
A imitação de Buda, em primeiro lugar, em direção à iluminação.
As escolas do “Chang” (Zen chinês) disputaram sobre a verdadeira técnica para atingir o “despertar” (em japonês, “satori”), finalidade última da seita. As escolas do Norte da China afirmaram a possibilidade de uma doutrina da iluminação, paulatina e gradativa. As do Sul, responderam com a doutrina da iluminaçào súbita, a do patriarca Hui-Neng (em japonês, Eno).



A história do zen conta-se por patriarcas.
Há uma série de patriarcas hindus. A que se segue depois do patriarca Bodhidharma (“Daruam, em japonês), a série de patriarcas chineses do zen (isto é : do “Chang”). O Zen do Japão herda desta densa tradição, iniciada, lá na India, séculos antes.
A molde da sucessão do principado, nos mosteiros zen, esta passagem de poder, de patriarca a patriarca, foi registrada numa obra chamada “A Transmissão as Lâmpada”, como se passassem, um ao outro, de mão em mão, a luz da flor do zen, essa flor de luz total.
O cristianismo nasceu das palavras de Jesus, o zen brotou de um silêncio de Buda.
Um dia, O Iluminado apresentou aos discípulos uma flor, sem dizer palavra, em lugar do costumado sermão. Um único discípulo entendeu: Mahakasyapa, primeiro patriarca do zen.
A doutrina da meditação silenciosa, a concentração descontraída, a dança quieta, a iluminação súbita, a superação dialética dos contrários, na vida diária.
Isso tudo são palavras. Não foi assim que Bashô assimilou estes valores.
Zenicamente, incorporou-a através de práticas.
Como se sabe, o budismo não é, propriamente uma “religião”, uma ligação entre o homem eos deuses: se não ateu, o budismo é, pelo menos , agnóstico. Não há deuses a adorar, nenhuma potência transcendental: os atos de homenagem a Buda são apenas e exatamente isso, homenagens a alguém extraordinário, o herói fundador, osigno original.
O problema do budismo é a descoberta da Dor. O resgate da Dor. E a entrega dos que se sacrificam para livrar outros da Dor.
Como emSartre, no budismo, o problema de Deus se dissolve numa irrelevância.
Realamente interessa é que os seres vivos são vítimas da Dor. E só a solidariedade, no sentido mais cósmico, pode minorar este fundamento da condição humana, feita de miséria, carência e penúria de ser. A profundidade da poesia de Bashô, radica na contínua e intensa concentração, à luz do zen, dos significados da vida humana. Sua inanidade. Sua fraqueza. Seus esplendores.
E - naturalmente - dos significantes (formas) que sua cultura lhe proporcionava ( o Nô, o Tanka, o Waka, o Renga, o Hai-ga, as artes zen).
À luz do zen, nenhuma distinção entre forma e conteudo: a religiosidade não se distingue das “formas” materiais em que se manifesta. Daí, os minuciosos rituais da Arte do Chá (‘Chá-Do”) , do Arranjo Floral (“Ikebana”, “Ka-Do”), da Arte do Arco (“Kyu-Do”).
O zen não é uma fé. Nem uma teoria. Realiza-se através de práticas (formas sociais) concretas, materiais, físicas.
Zen é que nem jazz. E humor. Dessas coisas que não se explicam (isto não é uma explicação).
Perguntado sobre o que era jazz, o grande mestre zen, Satchmo: - Precisar explicar, não vai entender.
O livro sobre zen mais conhecido no Ocidente, “This is it”, de Alan Watts, ex-pastor protestante, “convertido” ao budismo, só pode ser traduzido como “Ë Isso Aí”.
Em termos de semiótica de Peirce, a experiência zen seria, eu acho, a tentativa de recuperar a Primeiridade, o ícone, a experiência pura, antes das palavras, uma experiência artística, a arte sendo , sempre, a tentativa de transformar uma Terceiridade, símbolos, palavras, conceitos, em Primeiridade (percepção, formas físicas, cores , materialidades).
Essa transverbalidade da experiência zen evidencia-se no “satori”, a iluminação, pessoal e intransferível, impossível de programar, prever ou administrar (o desejo de atingir a iluminação, inclusive, dizem, é o maior obstáculo para atingi-la).
Houve porém na Antiguidade, porém, um paralelo ocidental à experiência zen: o “cinismo” grego. “A virtude está nos atos e não necessita de discursos nem ciências numerosas”, este o princípio de Antístenes, o pai dos cínicos.
Comenta Bréhier : “mas um ato, falando com propriedade, não se ensina, se chega a ele atrave’s do obrar (‘askesis’= ascese), mediante o ecxercício e a exemplaridade”.
O Cinismo, desenvolvido por Antístenes, Diógenes, Crates, Bion, descende diretamente de Sócrates, de quem herdou a desconfiança em relação à palavra escrita.
Os antigos discutiam se o cinismo era doutrina filosófica ou modo de vida.
Isto é : palavras ou não-palavras.
A filosofia, seja lá o que for, são palavras, enquanto portadoras de conceitos. Não só as palavras, porém, podem gerar conceitos.
As imagens, os gestos, as atitudes, as situações materiais, também, podem significar, conceptualmente.
De todas as convergências e tangências entre o cinismo grego e o zen sino-nipônico, esta a mais visível : é consciência atingida sem palavras.
O zen se passa todo num plano transverbal.
O treinamento nas comunidades zen encaminha as consciências em direção a um despertar ( “satori”, em japonês), uma iluminação, indescritível e intransferível. O desabrochar de uma consciência icônica, talvez. Os processos usados pelos mestres, no adestramento dos pretendentes à iluminação são os mais aberrantes, para nossos conceitos ocidentais de pedagogia, centrados na palavra.
Pancadas, pedidos absurdos, atitudes, os processos de treinamento incluem a concentração em velhas anedotas exemplares, atribuídas a velhos mestres, chamadas , em japonês, “koans”.
Diógenes, ao meio-dia, procurando um homeme com uma lâmpada acesa, é um koan perfeito. Como koan é aquilo de Diógenes mandar sair da frente de seu sol um Alexandre Magno que lhe oferecia a satisfação de qualquer desejo.

Um koan

Po-chang tinha tantos alunos que se viu obrigado a abrir outro mosteiro. Para achar alguém apto a ser mestre na nova casa, juntou seus monges e colocou um cântaro na frente deles dizendo:
- Sem o chamarem de cântaro, me digam o que é isso.
- Você não pode chamá-lo um pedaço de lenha, disse o monge principal. Nesta altura, o cozinheiro do mosteiro derrubou o cântaro com um pontapé e afastou-se.
Po-chang deu a direção do novo mosteiro ao cozinheiro.




Outro
Hui-ko procurou Bodhidharma, primeiro patriarca do zen chinês e lhe disse:
- Não tenho paz na minha mente. Pacifica minha mente.
- Traz tua mente à minha presença e eu a pacifico, responde Bodhidharma.
- Mas quando eu busco minha própria mente, não consigo encontrá-la, diz Hui-ko.
E Bodhidharma:
- Pronto! Pacifiquei tua mente.



Há centenas de koans, reunidos em grandes coleções, com os ditos e feitos dos mestres mais famosos.
Nas comunidades, os mestres apresentam, oralmente, um koan, para que o discípulo concentre-se, durante um tempo, que pode ser longo, trabalhando mentalmente sobre ele, absorvendo sua “outra lógica”.
“A educação intelectual é, antes, ação maciça e imediata de um aforismo, meditação sobre um tema, que construção racional, meditação que prepara a ação, e contrasta intensamente com a pura contemplação da verdade, diz E. Bréhier, dos cínicos e dos métodos formativos do cinismo grego. Palavras que cabem perfeitamente para descrever as técnicas zen.
A intuição para a vida cínica veio a Diógenes de maneira antiintelectual e não-verbal, num episódio, narrado por Laércio, com muito sabor zen “tendo visto um rato que andava de uma a outra parte, sem buscar leito, não tinha medo do escuro nem desejava nenhuma das coisas que constituem uma vida confortável, Diógenes achou remédio a sua indigência”.
Isso de receber lição ou mensagem diretamente dos fenômenos naturais, da viada das plantas e animais, lembra os mitos da origem das artes marciais, karatê e judô, impregnadas de zen.
O princípio do karatê foi intuído por um monge lutador o dia em que, depois da chuva, olhava uns corvos se secando sobre o telhado.
Ao abrir a asa, um dos corvos bateu com ela numa telha e quebrou-a .
Com isso, o monge soube que penas frágeis, mas concentradas, podem quebrar pedras e telhas.
Quanto ao judô, conta-se que, um dia, um mestre de lutas observava a neve que caía sobre as árvores, entre as quais um salgueiro. A neve se acumulava sobre os galhos das árvores mais rígidas, até quebrá-las com seu peso. Só o salgueiro permanecia intacto sob a neve: seus galhos flexíveis dobravam, deixando a neve cair. Desse princípio de não resistir, vencendo com a própria força do oponenete, nasceu o judô, ensinado pela própria natureza.
Como no zen, o cinismo oral, direto, foi transmitido de mestre para mestre: Söcrates, Antístenes, Diógenes, Crates e Zenão, o fundador do estoicismo.
Coincidências quase literais entre o ensinamento zen e cínico.
Um aforismo zen diz : “hora de comer, comer”.
Laércio reporta de Diógenes que, uma vez, comia em pleno fórum, quando alguém o repreendeu pelo inapropriado do lugar. “No fórum, é que eu tive fome”, respondeu-lhe o cínico.
Esta noite
eu corro

nenhuma pedra
pra jogar no cachorro

(Ryotan, haikaista do sec. XVIII, discípulo de Bashô)

Inúmeras anedotas zen, com amplo curso nos mosteiros da seita, registram as circunstâncias da iluminação de mestres do passado.
O estudo e a meditação sobre estas anedotas é parte integrante do preparo dos noviços e treinamento dos monges, ao lado dos “koans”, miniparábolas desconcertantes, atribuídas a autoridades ancestrais.
O preparo mental dos monges zen não é feito através de arquiteturas teóricas ou construções mítico-teológicas conceptualmente elaboradas : o treino zen ( a palavra de origem esportiva é mais adequada) é brusco, súbito, violento. Como o “despertar” (“satori”, em japonês), que pretende provocar. Ou pelo menos propiciar. “Satori”, um orgasmo da alma, organo-metamorfose?
Vamos por no ringue lado a lado um mestre do Ocidente e um mestre zen.
Deste lado, com as vinte toneladas da sua “Summa Theologica”, o dominicano italiano Tomás de Aquino (1227-1274), de origem nobre, campeão da síntese entre a filosofia grega (Aristóteles) e a religiosidade judaica mais profunda (Jesus e os evangelhos), tal como a Igreja católica a administra há bem dois milênios.
Neste outro lado d o ringue, o chinês Hui-Neng (658-713), conhecido pelos japoneses como Enô, sexto ( e último) patriarca do zen chinês, o mestre do Sul, da escola da iluminação súbita.
Momento de encontro e confronto entre o zen e o catolicismo não faltou. Foi quando aquele basco Francisco Xavier (séc. XVI), homem de D. Inácio Loyola, fundador da ordem jesuíta, aportou no Japão, na esteira das navegações ibéricas, e tentou converter, sozinho, o Império do Sol Nascente à religião de Roma.
Os resultados do encontro foram os mais contraditórios.
Nas cartas que remetia aos superiores na Europa, reprotando o andamento da catequese, Xavier se rejubila com a conquista para Cristo de tantas almas simples e com as facilidades do apostolado. Claro. Os jesuítas adotaram no caso do Japão uma estratégia perfeita para a catequese: apresentaram o cristianismo como uma nova seita do budismo, vindo da China! Negócio fechado: milhares de conversões.
Nesse entusiasmo triunfal, nas cartas de Xavier, uma das notas dissonantes: queixas quanto aos adeptos e monges de uma certa seita zen (deve ser a primeira vez que a palavra zen aparece na Europa).
De acordo com Xavier, não levam nada a sério, fazem brincadeiras sem parar, zombam, contam histórias absurdas, com grande desprezo por tudo que é sagrado.
Por outro lado,Xavier granjeou a simpatia e recebeu apoio de hierarcas zen, como Ninshitsu, superior da seita, que gostou muito do missionário de Loyola, talvez vendo naquele asceta, vestido de preto, alguma coisa tão louca que só podia ser zen.
Xavier fala do amigo: “tenho falado com diversos bonzos ilustrados, especialmente com um que é tido na mais alta estima por todos, pelo seu saber, conduta dignidade, como pela avançada idade de oitenta anos. Seu nome é Ninshitsu, que em japonês significa “Coração da Verade”. É uma espécie de bispo entre eles e, se o nome que usa é apropriado, é realmente um homem abençoado... Esse homem tem sido para mim um amigo maravilhoso”.
O diálogo entre eles, porém, não deve ter sido fácil.
Xavier ficou confuso, logo de cara, ao conversar com Ninhitsu.
O velho mestre zen parecia não saber se “possuía” ou não uma alma. Para ele, era inteiramente estranho o conceito de que uma “alma” era uma espécie de objeto que “alguém” pode estar “possuindo” e até mesmo “salvando”.
Havia um plano no qual nenhuma tradução era possível. Mas, também, havia outro plano.
O fato é que, no Japão, vários missionários jesuitas se tornaram adeptos da cerimônia da Arte do Chá, num diálogo entre civilizações, muito raro de ocorrer.
‘Técnicas zen hindus foram sendo introduzidas na China, desde o séc. II AC. Bodhidharma, o primeiro patriarca da seita zen, a tradição gostaria que ele tivesse chegado em Cantão, lá pelo séc. V da nossa era, tendo ensinado, na China do Norte, por meio século. Convenceu seus seguidores a abandonar todas as escrituras budistas, exceto a “Escritura sobre a Entrada de Buda em Lanka”. Esta ensina que o Verdadeiro Estado de Nirvana é o Vazio Total e que a emancipação do espírito deriva da intuição dessa altíssima, a mais alta das verdades. A assim chamada Doutrina Lanka de Bodhidharma foi transmitida por muitas gerações.
Hui-Neng, homem de origem humilde, um lenhador analfabeto, idéias revolucionárias e duradoura influência. Nascido em Fan-Yang, a sudoeste de Peking, Hui-Neng perdeu o pai muito cedo. E levava vida penosa, sustentando a mãe, como apanhador e vendedor de lenha.
Aos vinte e quatro anos, vendendo lenha na cidade, ouviu alguém recitando o Sutra do Diamante, uma das escrituras hindus, traduzidas para o chinês. Hui-Neng quis saber mais. Enviado a Hupei, submeteu-se à direção de Hung-Jen, o quinto patriarca, tornou-se monge e acabou superior do kosteiro Fa-Hsing, recebendo a dignidade de patriarca das mãos do próprio Hung-Jen.
Essa transmissão do patriarcado consistia na entrega do manto pessoal e da tigela de pedir esmolas.
Atuou por trinta e sete anos, atraindo os mais famosos mestres Zen da época, incluindo os quarenta e três “herdeiros da lei”, que disseminaram seus ensinamentos por toda a China, o Sudoeste Asiático, a Coréia e o Japão.
Do pensamento de Hui-Neng, chegou-nos um texto, “A Escritura Plataforma”, sermão pronunciado pelo sexto patriarca, no mosteiro de Ta-Fan.
De Hui-Neng, descendem, espiritualmente, Bashô e seu haikai, bem como as artes zen, das quais o haikai se alimentou.

(Excerto do livro "VIDA" de Paulo Leminski)

ZEN E POESIA

Existe uma relação muito direta entre zen e poesia. Entre zen e arte. O zen parece ser uma “religião” de artistas e poetas.

Coloco “religião” entre aspas, porque essa palavra, que em latim quer dizer “re-ligação”(“religio”), é ocidental demais, para designar, por exemplo, o conjunto das crenças hindus, onde há correntes atéias, até o budismo, que é, quanto a deuses, agnóstico. A norma, no Extremo Oriente, é o sincretismo.
Um japonês da Era Clássica, como Bashô, era, ao mesmo tempo, e sem conflitos, budista, confucionista e shintoista.
A exclusividade de uma confissào religiosa é produto tipicamente semita, judaico, cristão e islâmico. As tr6es grandes religiões do Ocidente são excludentes. “Não admitirás outros deuses, ao lado de “Javé, Jesus, Alá”.
Bem mais plásticas são as coisas no Extremo Oriente.
O zen (chinês) resulta da interação entre o budismo hindu e o taoismo sínico. No Japão, esta doutrina não teve dificuldade em assimilar os valores animistas do “shintô” nipônico, culto das forças da natureza, onde todas as entidades naturais (árvores, rios, montanhas, ventos, praias) são “kámi”, “deuses”.
Ponto de confluência de inúmeras “religiões”, ponto-diamante, o zen é uma fé de artistas. Uma fé que valoriza, absolutamente, a experiência imediata. A intuição. O aqui-e-agora. A superfície das coisas. O instantâneo. O pré ou post-racional.

acenda a luz de leve
eu lhe mostro uma beleza
- a bola de neve
(Bashô)

Conforme a tradição, Bashô teria tido, em vida, 3 000 discípulos.
Depois de sua morte, a mínima forma a que conferiu uma chispa definitiva tomou conta do Japão e extravazou até o Ocidente, onde aportou em fins do século passado.
Seu advento com o das gravuras japonesas, que tanto influenciaram os impressionistas da Europa, com fundas marcas na G6enese da chamada “arte mderna”, ameio caminho entre a abstração e o figurativo, feita mais de vazios e lacunas do que de massas e superfícies.
As minúsculas pegadas do haikai são visíveis no Imagismo inglês, liderado por Ezra Pound nos anos 20 deste século. Franceses, ingleses, alemães, até latino-americanos, o praticaram na alvorada do século XX.
Em 1 919, o mexicano Tablada publica sua coleção de haikais: “Un dia...”.
É de suspeitar odores nipônicos no “imagismo” de Garcia Lorca e na brevidade aforismática do poeta espanhol Antônio Machado.
No Brasil, o haikai disse “ô-hayô” com o modernismo de 22.
Por via francesa, evidentemente.
Tiveram caso com ele, nos anos 20, entre outros, Afrânio Peixoto, Ronald de Carvalho e, principalmente, Guilherme de Almeida, que bolou para o haikai uma forma brasileira, chumbada numa estrutura fixa de rimas, como se fosse um micro-soneto parnasiano.
Difícil não deconfiar, de resto, que os poemas-minuto de Oswald de Andrade, micromomentos de superinformação, não tenham inspiração no haikai, que Oswald, claro, conhecia, em versão francesa ou através de contemporâneos e colegas de agitação.
Nos anos 30, até a celebérrima pedra no caminho de Drummond traz consigo um certo perfume zen, que acusa, lá atrás, o haikai de Bashô.
Nem faltam registros de livros de haikai brasileiros nos anos 40. Nos anos 50 deste século, o haikai encontrou-se com a poesia de vanguarda: no concretismo paulista. De comum, entr4e eles, a ênfase na síntese, na brevidade, na inventividade da linguagem.
Poucos criadores brasileiros, porém, prestaram tantos serviços à forma cultivada por Bashô quanto Millor Fernandes. Não contente em popularizar a palavra “haikai”, Millor ainda produziu alguns dos melhores espécies no gênero, entre nós.
Em Millor e seus discípulos, prevalece, é claro, o elemento humoorístico sobre o lírico. Mas esses dois elementos não são tão distantes assim.
Os distintos cavalheiros e damas presentes terão, agora, a oportunidade de apreciar um grande pequeno espetáculo: um desfile, em arquipélago, de haikais.
Todos os micro poemas são, igualmente candidatos ao prêmio luxo e ao troféu oriiginalidade.
Com os senhores, Bashô e seus descendentes.

pobre sim pobre pobre
a mais pobre das províncias
mas sinta essa brisa
(Issa, sec. XVIII)

de mim
inscrevam aqui
adorava haikai e caqui
(Shiki, séc. XIX)

A aparição dessas caras na multidão:
Pétalas num galho úmido, escuro.
(Ezra Pound, séc. XX)

Folhinhas.
Linhas. Zibelinas só
zinhas.
(Maiakowski, trad. Haroldo de Campos)

Lava, escorre e agita
A areia. E enfim, na bateia,
Fica uma pepita.
(Guilherme de Almeida)

Stop.
A vida parou.
Ou foi o automóvel?
(Carlos Drummond de Andrade)

Fugaz como o instante em que a miro,
une o céu à terra
e a seu pranto de ouro, meu suspiro.
(José Juan Tablada)
Chove.
Em que ontem,
Em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
(Jorge Luis Borges)

A noite
me pinga uma estrela no olho
e passa.
(Paulo Leminski)

primavera não nos deixe
pássaros choram
e há lágrimas no olho do peixe.
(Bashô)

dia de finados.
Do jeito que estão
dedico as flores.
(Bashô)

casca oca
a cigarra
cantou-se toda
(Bashô)

velha lagoa
o sapo salta
- o som da água
(Bashô)


(Texto de Paulo Leminski, extraído do livro “VIDA”)

ÁGUAS FRESCAS DE ANO NOVO

"QUE AS ÁGUAS FRESCAS DESSE ANO NOVO
TE LAVEM A ALMA DE CADA DIA
DIA APÓS DIA, PURO E CALMO
DIA APÓ DIA, UM NOVO DIA

(Mestre Zen Sengai)

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

ALETRIA E HERMENÊUTICA

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo : riscado, deflagrado, foi-se a serventia.
Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde os sentido de gracejo, de dom sobrenatural , e de atrativo. No terreno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária : tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento. Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de desempenhos : donde, e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva - demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato - a qual, a grosso , de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de : anedotas de abstração. Serão essas - as com alguma coisa excepta - as de pronta valia no que aqui se quer tirar : seja, o leite que a vaca não prometeu.
Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins : e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida tambem é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”.
Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguem lhe grita : - ”Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!... “Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase ... e exclama : - “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...”
Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito.
De análogo pathos, balizando posição-limite da irrealidade existencial ou de estática angústia
- e denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-giz-de-prender-peru - será aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu : - “Trocar... com quem?”
Menos ou mais o mesmo, em ethos negativo, verseja-se na copla :
“Esta si que es calle, calle;
calle de valor y miedo,
Quiero entrar y no me dejan,
quiero salir y no puedo.”

Movente importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente - e de modo novo original - a busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude primordiais) é o caso do garotinho, que, perdido, na multidão, na praça, em festa de quermesse, se aproxima de um poliícia e, choramingando indaga: __ “Seu guarda, o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu?!”
Entretanto - e isso concerne com a concepção hegeliana do erro absoluto? - aguda solução foi a de que se valeu o inglês, desesperado já com as sucessivas falsas ligações que o telefone lhe perpetrava : - “Telefonista, dê-me, por favor, um “número errado” errado...”
Sintetiza em si, porém, próprio geral, o mecanismo dos mitos - sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o incogniscível - a maneira de um sujeito procurar explicar o que é o telégrafo-sem-fio:
- “Imagine um cachorro basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e aponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça, no Rio, pega a latir...”
- “E é isso o telégrafo-sem-fio?”
- “Não. Isso é o telégrafo com fio. O sem-fio é a mesma coisa ... mas sem o corpo do cachorro.”
Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por sequência de operações substrativas, nesta outra, que é uma definição “por extração” __ “O nada é uma faca sem lâmina , da qual se tirou o cabo...” (Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra a idéia do “nada absoluto”: “... porque a idéia do objeto “não existindo” é necessariamente a idéia do objeto “existindo”, acrescida da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual tomada em bloco.” Trocado em miudo : esse “nada” seria apenas um ex-nada, produzido por uma ex-faca.)
Ou - agora o motivo lúdico __ fornece-nos outro menino, com sua tambem desitiva definição do “nada”: __ “É um balão , sem pele...” E com isso está-se de volta à poesia, colhendo imagens de eliminação parcial, como exemplo à mão, as estrelas, que no “Soir Religieux”de Verhaeren:
“Semblent les feux de grands cierges, tenus en main,
Dont on n’aperçoit pas monter la tige immense.”
Ou total, como nesta “adivinha”, que propunha uma menina do sertão - “O que é, o que é : que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente morta come, e se a gente viva comer morre?” Resposta: __ “É nada.”
Com o que, pode o pilheriático efeito passar a drástico desilusionante.
Como no fato do espartano - nos Apophthégmata lakoniká de Plutarco - que depenou um rouxinol e, achando-lhe pouca carne, xingou: - “Você é uma voz, e mais nada!”
Assim atribui-se a Voltaire - que, outra hora, diz ser a mesma amiúde “o romance do espírito” - a estrafalária seguinte definição de “Metafísica” : “É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um gato preto ... que não está lá.”
Seja quem seja, apenas o autor da blague não imaginou é que o cego em tão pretas condições pode não achar o gato, que pensa que busca, mas topar resultado mais importante - para lá da tacteada concentração. E vê-se que nessa risca é que devem adiantar os koan do ZEN.
E houve mesmo a áquica e eficaz receita que o médico deu a cliente neurótico : “R. / Uso int. / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa repetita, 20 c.c. / Eadem stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q.s.”
Tudo portanto, o que em compensação vale* é que as coisas não são em si tão simples, se bem que ilusórias. “O erro não existe : pois que enganar-se seria pensar ou dizer o que não é, isto é : não pensar nada, não dizer nada” - proclama genial Protágoras; nisto, Platão é do contra, querendo que o erro seja coisa positiva ; aqui, porém, sejamos amigos de Platão, mas ainda mais amigos da verdade; pela qual, aliás, diga-se, luta-se ainda e muito, no pensamento grego. *
Ainda uma adivinha “abstrata, de Minas : “O trem chega às 6 da manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista? “ (Porque é o sol.) Anedótica meramente.
Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem : velocidade horária, pontos de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina :
- “Qual é o nome do maquinista?”
Sem resposta, só ardilosa, lembra célebre koan : “Atravessa uma moça a rua : ela é a irmã mais velha ou a caçula? Apondo a mente a problemas sem saída, desses, o que o zenista pretende é atingir o satori, iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções.
Ao passo que a nada, ao “nada privativo”, teve aquele outro, anti-poeta, de reduzir a girafa, que passava da marca : - “Você está vendo esse bicho aí? Pois ele não existe!...” __ como recurso para sutilizar o excesso de existência dela, sobre o comum, desimaginável. Dissesse tal : - Isto é o-que-é que mais e demais há, do que nem não há...
Ora, porem, a idêntica niilificação enfática recorre Rilke, trazendo, de forte maneira, do imaginário aoreal, um ser fabuloso, que preexcede
- o Licorne: “Oh, este é o animal que não existe...”
Todavia desdeixante rasgo dialético foi o do que, ao reencontrar velho amigo, que pedia-lhe o segredo da aparente e invariada mocidade, respondeu: - “Mulheres...”__ e após suspensão e pausa : - “Evito-as...!”
Tudo tal a “hipótese de trabalho”na estória dos soldados famintos que ensinavam à velha avarenta fazer a “Sopa de Pedra”. Mistura tambem a gente interina clara de ovo ao açucar a limpar-se no tacho; e junta folhas de mamoeiro e bosta de vaca à roupa alva sendo lavada.
Remite-se a mulher. Omita-se igual o homem. Ora. Que o homem é a sombra de um sonho, referia Pindaro, skias ónar ánthropos; e __ vinda de outras eras... - Augusto dos Anjos.
Mas reza pela erística o capiau que, tentando dar a outro idéia de uma eletrola, em fim de esforço, se desatolou com esta intocável equação : __ “Você sabe o que é uma máquina de costura? Pois a vitrola é muito diferente...”
Corolário em não-senso : O que respondeu o anspeçada, em exame para sua promoção a cabo-de-esquadra: __ “Parábola? É precisamente a trajetória do vácuo no espaço.”
Nem é nada excepcionalmente maluco o gaio descobrimento do paciente que, com ternura, Manuel Bandeira nos diz em seu livro “Andorinha, Andorinha”: “Quando o visitante do Hospício de Alienados atravessava uma sala, viu um louquinho de ouvido colado à parede, muito atento. Uma hora depois, passando na mesma sala, lá estava o homem na mesma posição. Acercou-se dele e perguntou : “Que é que você está ouvindo?”O louquinho virou-se e disse: “Encoste a cabeça e escute.”O outro colou o ouvido à parede, não ouviu nada : “Não estou ouvindo nada.”Então o louquinho explicou intrigado : “Está assim há cinco horas.”
Afinal de contas, a parede são vertiginosos átomos, soem ser. Houve já até, não sei onde ou nos Estados-Unidos, uma certa parede que irradiava, ou emitia por si ondas de sons, perturbando os rádio-ouvintes etc. O universo é cheio de silêncios bulhentos. O maluquinho podia tanto ser um cientista amador quanto um profeta aguardando se completasse séria revelação. Apenas, nós é que estamos acostumados com que as paredes é que tenham ouvidos, e não os maluquinhos.
Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco, até levá-los ao sublime: seja daí que seu entre-limite é tão tênue. E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao excelso.
Conflui, portanto, que :
Os dedos são anéis ausentes?
Há palavras assim: desintegração...
O ar é o que não se vê, fora e dentro das pessoas. O mundo é Deus estando em toda a parte.
O mundo, para um ateu, é Deus não estando nunca em nenhuma parte.
Copo não basta : é preciso um cálice ou dedal com água para as grandes tempestades.
O O é um buraco não esburacado.
O que é - automaticamente?
O avestruz é uma girafa; só o que tem é que é um passarinho.
Haja a barriga sem o rei. (Isto é : o homem sem algum rei na barriga.)
Entre Abel e Caim, pulou-se um irmão começado por B.
Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia.
A peninha no rabo do gato não é apenas “para atrapalhar”.
Há uma rubra ou azul impossibilidae no roxo (e no não roxo)
O copo com água pela metade : está meio cheio ou meio vazio?
Saudade é o predomínio do que não está presente, diga-se , ausente. Diz-se de um infinito - rendez-vous das paralelas todas.
O silêncio proposital dá a maior possibilidade de música.
Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo.


(Prefácio ao livro “Tutaméia”, de João Guimarães Rosa)

PARÁBOLA DO GRÃO DE MOSTARDA

Uma mulher com olhos inchados e a cara banhada em lágrimas
E as mãos ao alto - saudou inclinando-se profundamente:
“Senhor tu és aquele, disse, “que ontem
Teve piedade de mim no bosque de figueiras,
Onde vivo só e crio o meu filho: mas ele
Vagando entre as flores encontrou uma serpente,
Que se enroscou na sua mão, enquanto ria
E brincava com a bífida língua e a boca aberta
Desta fria companheira de jogo. Mas ai! Não tardou
Em tornar-se tão pálido e quieto, que não podia crer
Porque deixou de brincar e meu peito se soltou
De seus lábios. E alguém disse: “Está mau,
Envenenado; e outro: “Há de morrer”.
Mas eu que não podia perder meu precioso filho,
Roguei para um médico, que pudesse devolver a luz
A seus olhos; era tão pequena a marca
Do beijo da serpente, e creio
Que não podia odiar-lhe, gracioso como era,
Nem feri-lo na brincadeira. E alguém disse:
“Há um homem santo na colina -
Olha! Agora passa com seu manto amarelo -
Pergunte a ele se há algum remédio
Para o mal que aflige teu filho.” Então vim
Tremendo a ti, cuja fronte é como a de um Deus,
E chorei e retirei o lenço da cara de meu menino,
Rogando-te me digas que métodos pudessem ser bons.
E tu, Grande Senhor! Não me rechaçando, mas miraste
Com olhos gentis e tocaste com mão paciente;
Logo o cubriste outra vez a cara, dizendo-me:
“Sim, irmã, há o que pode curá-lo
Primeiro a ti e logo a ele, se podes buscar esta casa;
Pois aqueles que buscam um médico lhes levam o
Que os ordenou. Portanto te rogo, encontra
Um negro grão de mostarda; porém recorda
Que não hás de tomá-lo de mão nem de casa
Onde pai, mãe, filho ou escravo haja morto;
Te irá bem se podes achar tal grão.”
Assim tu falaste, meu Senhor!”
O Mestre sorriu
Com extrema ternura: “Sim, te falei assim,
Querida Kisagotami! Porém, acaso achaste
O grão?”
“Fui, Senhor, estreitando contra meu peito
O menino, que estava esfriando, perguntando em cada casa
Aqui na selva e perto da cidade -
“Vos rogo me deis um grão de mostarda vossa”;
E todos os que tinham, deram
Porque todos os pobres têm piedade dos pobres;
Mas quando perguntava: “Na casa de meu amigo
Não há morto por acaso alguém -
Esposa ou mulher ou menino ou escravo?”, eles disseram
Oh irmã! Que nos perguntas? Muitos são os mortos
E os que vivem, poucos!
Por isto agradecendo com triste voz devolvi a mostarda;
E pedi a outros; porém os outros disseram:
“Eis aqui a semente, porém nós perdemos nosso escravo!”
“Eis aqui a semente, porém nosso bom homem é morto!”
“Eis aqui a semente, porém aquele que a semeou está morto
Entre a estação das chuvas e a colheita!”
Ah!, Senhor! Não pude achar uma só casa
Onde houvesse sementes de mostarda e ninguém estivesse morto!
Ah, Senhor! Não pude achar uma só casa
Portanto deixei a meu menino, que não queria mamar
Nem sorrir - junto à vinha silvestre perto do rio,
Para buscar teu rosto e beijar teus pés, e rogar
Onde possa encontrar esta semente, e não encontrar morte
Se em verdade meu filho não esteja agora morto,
Como o temo, e me têm dito.”
“Minha irmã! Você encontrou”, disse o Mestre,
“Buscando algo que ninguém encontra - o bálsamo
Que devia dar-te. Aquele que amavas dormia
Morto sobre teu peito ontem: hoje
Sabes que todo o grande mundo chora tua mesma dor:
O pesar que todos compartem é menor para um.
Olha! Derramaria meu sangue se pudesse deter tuas lágrimas
E conquistar o segredo desta maldição
Que faz do doce amor nossa angústia
E leva flores e pastos ao sacrifício -
Como o fazem as mudas bestas - e seus senhores, os homens
Busco este segredo: anda e enterra a teu filho!”