quinta-feira, 13 de outubro de 2011

ALETRIA E HERMENÊUTICA

A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota.
A anedota, pela etimologia e para a finalidade, requer fechado ineditismo. Uma anedota é como um fósforo : riscado, deflagrado, foi-se a serventia.
Mas sirva talvez ainda a outro emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de análise, nos tratos da poesia e da transcendência. Nem será sem razão que a palavra “graça” guarde os sentido de gracejo, de dom sobrenatural , e de atrativo. No terreno do humour, imenso em confins vários, pressentem-se mui hábeis pontos e caminhos. E que, na prática de arte, comicidade e humorismo atuem como catalisadores ou sensibilizantes ao alegórico espiritual e ao não-prosaico, é verdade que se confere de modo grande. Risada e meia? Acerte-se nisso em Chaplin e em Cervantes. Não é o chiste rasa coisa ordinária : tanto seja porque escancha os planos da lógica, propondo-nos realidade superior e dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento. Não que dê toda anedota evidência de fácil prestar-se àquela ordem de desempenhos : donde, e como naturalmente elas se arranjam em categorias ou tipos certos, quem sabe conviria primeiro que a respeito se tentasse qualquer razoável classificação. E há que, numa separação mal debuxada, caberia desde logo série assaz sugestiva - demais que já de si o drolático responde ao mental e ao abstrato - a qual, a grosso , de cômodo e até que lhe venha nome apropriado, perdoe talvez chamar-se de : anedotas de abstração. Serão essas - as com alguma coisa excepta - as de pronta valia no que aqui se quer tirar : seja, o leite que a vaca não prometeu.
Talvez porque mais direto colindem com o não-senso, a ele afins : e o não-senso, crê-se, reflete por um triz a coerência do mistério geral, que nos envolve e cria. A vida tambem é para ser lida. Não literalmente, mas em seu supra-senso. E a gente, por enquanto, só a lê por tortas linhas. Está-se a achar que se ri. Veja-se Platão, que nos dá o “Mito da Caverna”.
Siga-se, para ver, o conhecidíssimo figurante, que anda pela rua, empurrando sua carrocinha de pão, quando alguem lhe grita : - ”Manuel, corre a Niterói, tua mulher está feito louca, tua casa está pegando fogo!... “Larga o herói a carrocinha, corre, voa, vai, toma a barca, atravessa a Baía quase ... e exclama : - “Que diabo! eu não me chamo Manuel, não moro em Niterói, não sou casado e não tenho casa...”
Agora, ponha-se em frio exame a estorieta, sangrada de todo burlesco, e tem-se uma fórmula à Kafka, o esqueleto algébrico ou tema nuclear de um romance kafkaesco por ora não ainda escrito.
De análogo pathos, balizando posição-limite da irrealidade existencial ou de estática angústia
- e denunciando ao mesmo tempo a goma-arábica da língua quotidiana ou círculo-de-giz-de-prender-peru - será aquela do cidadão que viajava de bonde, passageiro único, em dia de chuva, e como estivesse justo sentado debaixo de goteira, perguntou-lhe o condutor por que não trocava de lugar. Ao que, inerme, humano, inerte, ele respondeu : - “Trocar... com quem?”
Menos ou mais o mesmo, em ethos negativo, verseja-se na copla :
“Esta si que es calle, calle;
calle de valor y miedo,
Quiero entrar y no me dejan,
quiero salir y no puedo.”

Movente importante símbolo, porém, exprimindo possivelmente - e de modo novo original - a busca de Deus (ou de algum Éden pré-prisco, ou da restituição de qualquer de nós à invulnerabilidade e plenitude primordiais) é o caso do garotinho, que, perdido, na multidão, na praça, em festa de quermesse, se aproxima de um poliícia e, choramingando indaga: __ “Seu guarda, o sr. não viu um homem e uma mulher sem um meninozinho assim como eu?!”
Entretanto - e isso concerne com a concepção hegeliana do erro absoluto? - aguda solução foi a de que se valeu o inglês, desesperado já com as sucessivas falsas ligações que o telefone lhe perpetrava : - “Telefonista, dê-me, por favor, um “número errado” errado...”
Sintetiza em si, porém, próprio geral, o mecanismo dos mitos - sua formulação sensificadora e concretizante, de malhas para captar o incogniscível - a maneira de um sujeito procurar explicar o que é o telégrafo-sem-fio:
- “Imagine um cachorro basset, tão comprido, que a cabeça está no Rio e aponta do rabo em Minas. Se se belisca a ponta do rabo, em Minas, a cabeça, no Rio, pega a latir...”
- “E é isso o telégrafo-sem-fio?”
- “Não. Isso é o telégrafo com fio. O sem-fio é a mesma coisa ... mas sem o corpo do cachorro.”
Por aqui, porém, vai-se chegar perto do nada residual, por sequência de operações substrativas, nesta outra, que é uma definição “por extração” __ “O nada é uma faca sem lâmina , da qual se tirou o cabo...” (Só que, o que assim se põe, é o argumento de Bergson contra a idéia do “nada absoluto”: “... porque a idéia do objeto “não existindo” é necessariamente a idéia do objeto “existindo”, acrescida da representação de uma exclusão desse objeto pela realidade atual tomada em bloco.” Trocado em miudo : esse “nada” seria apenas um ex-nada, produzido por uma ex-faca.)
Ou - agora o motivo lúdico __ fornece-nos outro menino, com sua tambem desitiva definição do “nada”: __ “É um balão , sem pele...” E com isso está-se de volta à poesia, colhendo imagens de eliminação parcial, como exemplo à mão, as estrelas, que no “Soir Religieux”de Verhaeren:
“Semblent les feux de grands cierges, tenus en main,
Dont on n’aperçoit pas monter la tige immense.”
Ou total, como nesta “adivinha”, que propunha uma menina do sertão - “O que é, o que é : que é melhor do que Deus, pior do que o diabo, que a gente morta come, e se a gente viva comer morre?” Resposta: __ “É nada.”
Com o que, pode o pilheriático efeito passar a drástico desilusionante.
Como no fato do espartano - nos Apophthégmata lakoniká de Plutarco - que depenou um rouxinol e, achando-lhe pouca carne, xingou: - “Você é uma voz, e mais nada!”
Assim atribui-se a Voltaire - que, outra hora, diz ser a mesma amiúde “o romance do espírito” - a estrafalária seguinte definição de “Metafísica” : “É um cego, com olhos vendados, num quarto escuro, procurando um gato preto ... que não está lá.”
Seja quem seja, apenas o autor da blague não imaginou é que o cego em tão pretas condições pode não achar o gato, que pensa que busca, mas topar resultado mais importante - para lá da tacteada concentração. E vê-se que nessa risca é que devem adiantar os koan do ZEN.
E houve mesmo a áquica e eficaz receita que o médico deu a cliente neurótico : “R. / Uso int. / Aqua fontis, 30 c.c. / Illa repetita, 20 c.c. / Eadem stillata, 100 c.c. / Nihil aliunde, q.s.”
Tudo portanto, o que em compensação vale* é que as coisas não são em si tão simples, se bem que ilusórias. “O erro não existe : pois que enganar-se seria pensar ou dizer o que não é, isto é : não pensar nada, não dizer nada” - proclama genial Protágoras; nisto, Platão é do contra, querendo que o erro seja coisa positiva ; aqui, porém, sejamos amigos de Platão, mas ainda mais amigos da verdade; pela qual, aliás, diga-se, luta-se ainda e muito, no pensamento grego. *
Ainda uma adivinha “abstrata, de Minas : “O trem chega às 6 da manhã, e anda sem parar, para sair às 6 da tarde. Por que é que não tem foguista? “ (Porque é o sol.) Anedótica meramente.
Outra, porém, fornece vários dados sobre o trem : velocidade horária, pontos de partida e de chegada, distância a ser percorrida; e termina :
- “Qual é o nome do maquinista?”
Sem resposta, só ardilosa, lembra célebre koan : “Atravessa uma moça a rua : ela é a irmã mais velha ou a caçula? Apondo a mente a problemas sem saída, desses, o que o zenista pretende é atingir o satori, iluminação, estado aberto às intuições e reais percepções.
Ao passo que a nada, ao “nada privativo”, teve aquele outro, anti-poeta, de reduzir a girafa, que passava da marca : - “Você está vendo esse bicho aí? Pois ele não existe!...” __ como recurso para sutilizar o excesso de existência dela, sobre o comum, desimaginável. Dissesse tal : - Isto é o-que-é que mais e demais há, do que nem não há...
Ora, porem, a idêntica niilificação enfática recorre Rilke, trazendo, de forte maneira, do imaginário aoreal, um ser fabuloso, que preexcede
- o Licorne: “Oh, este é o animal que não existe...”
Todavia desdeixante rasgo dialético foi o do que, ao reencontrar velho amigo, que pedia-lhe o segredo da aparente e invariada mocidade, respondeu: - “Mulheres...”__ e após suspensão e pausa : - “Evito-as...!”
Tudo tal a “hipótese de trabalho”na estória dos soldados famintos que ensinavam à velha avarenta fazer a “Sopa de Pedra”. Mistura tambem a gente interina clara de ovo ao açucar a limpar-se no tacho; e junta folhas de mamoeiro e bosta de vaca à roupa alva sendo lavada.
Remite-se a mulher. Omita-se igual o homem. Ora. Que o homem é a sombra de um sonho, referia Pindaro, skias ónar ánthropos; e __ vinda de outras eras... - Augusto dos Anjos.
Mas reza pela erística o capiau que, tentando dar a outro idéia de uma eletrola, em fim de esforço, se desatolou com esta intocável equação : __ “Você sabe o que é uma máquina de costura? Pois a vitrola é muito diferente...”
Corolário em não-senso : O que respondeu o anspeçada, em exame para sua promoção a cabo-de-esquadra: __ “Parábola? É precisamente a trajetória do vácuo no espaço.”
Nem é nada excepcionalmente maluco o gaio descobrimento do paciente que, com ternura, Manuel Bandeira nos diz em seu livro “Andorinha, Andorinha”: “Quando o visitante do Hospício de Alienados atravessava uma sala, viu um louquinho de ouvido colado à parede, muito atento. Uma hora depois, passando na mesma sala, lá estava o homem na mesma posição. Acercou-se dele e perguntou : “Que é que você está ouvindo?”O louquinho virou-se e disse: “Encoste a cabeça e escute.”O outro colou o ouvido à parede, não ouviu nada : “Não estou ouvindo nada.”Então o louquinho explicou intrigado : “Está assim há cinco horas.”
Afinal de contas, a parede são vertiginosos átomos, soem ser. Houve já até, não sei onde ou nos Estados-Unidos, uma certa parede que irradiava, ou emitia por si ondas de sons, perturbando os rádio-ouvintes etc. O universo é cheio de silêncios bulhentos. O maluquinho podia tanto ser um cientista amador quanto um profeta aguardando se completasse séria revelação. Apenas, nós é que estamos acostumados com que as paredes é que tenham ouvidos, e não os maluquinhos.
Por onde, pelo comum, poder-se corrigir o ridículo ou o grotesco, até levá-los ao sublime: seja daí que seu entre-limite é tão tênue. E não será esse um caminho por onde o perfeitíssimo se alcança? Sempre que algo de importante e grande se faz, houve um silogismo inconcluso, ou, digamos, um pulo do cômico ao excelso.
Conflui, portanto, que :
Os dedos são anéis ausentes?
Há palavras assim: desintegração...
O ar é o que não se vê, fora e dentro das pessoas. O mundo é Deus estando em toda a parte.
O mundo, para um ateu, é Deus não estando nunca em nenhuma parte.
Copo não basta : é preciso um cálice ou dedal com água para as grandes tempestades.
O O é um buraco não esburacado.
O que é - automaticamente?
O avestruz é uma girafa; só o que tem é que é um passarinho.
Haja a barriga sem o rei. (Isto é : o homem sem algum rei na barriga.)
Entre Abel e Caim, pulou-se um irmão começado por B.
Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia.
A peninha no rabo do gato não é apenas “para atrapalhar”.
Há uma rubra ou azul impossibilidae no roxo (e no não roxo)
O copo com água pela metade : está meio cheio ou meio vazio?
Saudade é o predomínio do que não está presente, diga-se , ausente. Diz-se de um infinito - rendez-vous das paralelas todas.
O silêncio proposital dá a maior possibilidade de música.
Se viemos do nada, é claro que vamos para o tudo.


(Prefácio ao livro “Tutaméia”, de João Guimarães Rosa)

PARÁBOLA DO GRÃO DE MOSTARDA

Uma mulher com olhos inchados e a cara banhada em lágrimas
E as mãos ao alto - saudou inclinando-se profundamente:
“Senhor tu és aquele, disse, “que ontem
Teve piedade de mim no bosque de figueiras,
Onde vivo só e crio o meu filho: mas ele
Vagando entre as flores encontrou uma serpente,
Que se enroscou na sua mão, enquanto ria
E brincava com a bífida língua e a boca aberta
Desta fria companheira de jogo. Mas ai! Não tardou
Em tornar-se tão pálido e quieto, que não podia crer
Porque deixou de brincar e meu peito se soltou
De seus lábios. E alguém disse: “Está mau,
Envenenado; e outro: “Há de morrer”.
Mas eu que não podia perder meu precioso filho,
Roguei para um médico, que pudesse devolver a luz
A seus olhos; era tão pequena a marca
Do beijo da serpente, e creio
Que não podia odiar-lhe, gracioso como era,
Nem feri-lo na brincadeira. E alguém disse:
“Há um homem santo na colina -
Olha! Agora passa com seu manto amarelo -
Pergunte a ele se há algum remédio
Para o mal que aflige teu filho.” Então vim
Tremendo a ti, cuja fronte é como a de um Deus,
E chorei e retirei o lenço da cara de meu menino,
Rogando-te me digas que métodos pudessem ser bons.
E tu, Grande Senhor! Não me rechaçando, mas miraste
Com olhos gentis e tocaste com mão paciente;
Logo o cubriste outra vez a cara, dizendo-me:
“Sim, irmã, há o que pode curá-lo
Primeiro a ti e logo a ele, se podes buscar esta casa;
Pois aqueles que buscam um médico lhes levam o
Que os ordenou. Portanto te rogo, encontra
Um negro grão de mostarda; porém recorda
Que não hás de tomá-lo de mão nem de casa
Onde pai, mãe, filho ou escravo haja morto;
Te irá bem se podes achar tal grão.”
Assim tu falaste, meu Senhor!”
O Mestre sorriu
Com extrema ternura: “Sim, te falei assim,
Querida Kisagotami! Porém, acaso achaste
O grão?”
“Fui, Senhor, estreitando contra meu peito
O menino, que estava esfriando, perguntando em cada casa
Aqui na selva e perto da cidade -
“Vos rogo me deis um grão de mostarda vossa”;
E todos os que tinham, deram
Porque todos os pobres têm piedade dos pobres;
Mas quando perguntava: “Na casa de meu amigo
Não há morto por acaso alguém -
Esposa ou mulher ou menino ou escravo?”, eles disseram
Oh irmã! Que nos perguntas? Muitos são os mortos
E os que vivem, poucos!
Por isto agradecendo com triste voz devolvi a mostarda;
E pedi a outros; porém os outros disseram:
“Eis aqui a semente, porém nós perdemos nosso escravo!”
“Eis aqui a semente, porém nosso bom homem é morto!”
“Eis aqui a semente, porém aquele que a semeou está morto
Entre a estação das chuvas e a colheita!”
Ah!, Senhor! Não pude achar uma só casa
Onde houvesse sementes de mostarda e ninguém estivesse morto!
Ah, Senhor! Não pude achar uma só casa
Portanto deixei a meu menino, que não queria mamar
Nem sorrir - junto à vinha silvestre perto do rio,
Para buscar teu rosto e beijar teus pés, e rogar
Onde possa encontrar esta semente, e não encontrar morte
Se em verdade meu filho não esteja agora morto,
Como o temo, e me têm dito.”
“Minha irmã! Você encontrou”, disse o Mestre,
“Buscando algo que ninguém encontra - o bálsamo
Que devia dar-te. Aquele que amavas dormia
Morto sobre teu peito ontem: hoje
Sabes que todo o grande mundo chora tua mesma dor:
O pesar que todos compartem é menor para um.
Olha! Derramaria meu sangue se pudesse deter tuas lágrimas
E conquistar o segredo desta maldição
Que faz do doce amor nossa angústia
E leva flores e pastos ao sacrifício -
Como o fazem as mudas bestas - e seus senhores, os homens
Busco este segredo: anda e enterra a teu filho!”

A VIDA DE BUDA, A VIDA DO SER HUMANO

Esta é a estória de um monge. Ela nos diz porque o Buda se tornou um monge, dos grandes sofrimentos que ele passou e de seu grande iluminamento. Embora este monge tenha vivido 2 500 anos atrás, esta estória não é simplesmente história. Se assim fosse, não assumiria hoje relevância a todos aqueles que se aprofundam para a busca de solução para os problemas mais vitais.
Deixe-nos agora contar a estória e ver como podemos ir além da mera estória de um homem há muito morto.

“2 500 anos atrás uma criança nasceu, o filho de um rei na India. Em seu nascimento, profetas prognosticaram que ele se tornaria um rei ou um monge. Seu pai, não desejando que seu filho suportasse o flagelamento de uma existência ascética, e querendo a continuidade de sua linhagem real, protegia a criança dos problemas da vida dando a ela todos os prazeres que dinheiro pudesse comprar.
A criança chamada Sidarta Gautama cresceu e se tornou um homem realizado, hábil nas artes e ciências de seu tempo. Ainda jovem casou-se e teve um filho. Mas Sidarta crescera atormentado, insatisfeito e se sentia limitado pelos prazeres que seu pai o cercava e desejava saber mais da vida que aquela limitada pelas paredes das vilas em que vivia. Ele convocou seu criado e penetraram no mundo rude e confuso do homem comum, e neste mundo encontraram “um homem doente, um homem idoso e um homem morto.”

Ele se chocou com os encontros e pediu a seu criado para explicar-lhe o significado. Este lhe disse que isto acontecia a todos e que ninguém poderia escapar de qualquer dos três. Sua mente se perturbou, e confuso e perdido ele teve um encontro posterior – desta vez com um monge. Vendo a profunda serenidade e paz de espírito deste homem, Gautama votou por se tornar um monge.
Uma noite ele se despediu de sua esposa e filho enquanto dormiam e refugiou-se na floresta para tornar-se um asceta peregrino, cortou seu cabelo simbolizando o rompimento com as relações mundanas. Então estudou com os sábios da floresta, mas após aprender o que eles ofereciam, ele ainda se sentia insatisfeito e sem calma. Ele peregrinava e encontrou alguns ascetas e se juntou a eles e praticava todas as práticas austeras. Ele jejuava e infligia toda espécie de tormentos sobre sua pessoa. Ao fim e próximo à morte, ele lembrou de um tempo em que ele via seu pai e os camponeses lavrarem a terra. Naquele momento ele se sentiu uno com a dor e o sofrimento do mundo. Lembrando como esta experiência abria as portas para uma consciência mais profunda do Um e do Todo, ele resolveu desistir de sua prática ascética, a qual poderia levá-lo somente à morte e procurar reviver esta Unidade.
Nesse mesmo momento uma garota, Nabadala, a pastora, passava por perto e vendo Sidarta fraco por falta de alimento, deu a ele leite de cabra para beber. Recuperado, Sidarta foi embora procurando um lugar adequado para meditar. Ele veio até uma árvore de nome Bo. Sotya, um cortador de grama deu-lhe um pouco de grama para sentar-se, Sidarta tomou a grama e espalhou-a sob a árvore. Então, sentando, ele fez o voto: “Pode minha carne secar e cair de meus ossos, podem meus ossos se esmagar, ainda assim eu não mexerei desse assento até que eu atinja completo iluminamento”. Então durante a longa noite ele foi tentado por Mara. Ao amanhecer, ele contemplou a estrela da manhã; então ele se sentiu completamente iluminado e exclamou “maravilha das maravilhas, todos os seres são dotados de Natureza Búdica.”
Como devemos interpretar esta estória? Como um relato histórico ou biográfico da vida de um monge? Ou tem ela algum outro valor? Sidarta Gautama que se tornou Buda Shakyamuni foi sem dúvida um homem admirável. Sozinho ele estabeleceu uma grande revolução espiritual que veio a transformar India, Tibet, China, Sudeste Asiático, Coréia, Japão e agora quem sabe a América também. Mesmo após 2 500 anos, seus ensinamentos são ainda vivos e, muitos dirão, o único caminho válido para se safar do estupor tecnológico e encontrar o Todo e seu significado. A estória da vida de tal grande homem deve ser interessante, cheia de drama e talvez muito inspirante. Ela pode se tornar matéria de pesquisa e estudo. Mas, no fim, se isto é tudo que é a estória de um grande homem, não teria ela ainda assim um valor limitado?
O grande e fundamental ensinamento do Budismo é que tudo é Um – não há Outro. Este Uno é o objetivo, os meios e a consequência. No Uno nós começamos a jornada, no Uno nós continuamos e no Uno nós terminamos. Não-divididos, sempre em casa, nós não obstante somos cativados pelas ilusões que nascem das ondas da mente, e neste cativeiro nossa Unidade é aparentemente destruída, como o reflexo da lua é dispersado pelo vento na superfície de um lago.
As últimas palavras de Buda para seus discípulos foram: “Sede ilhas dentro de vós mesmos, sede um refúgio para vós mesmos, não tome para vós qualquer outro refúgio. Vede a verdade como uma ilha, vede a Verdade como um refúgio. Não procure refúgio em ninguém outro mas em vós mesmos.”
É tornando-se um refúgio para si mesmo, não procurando a Verdade do lado de fora e deixando passar a miragem do Outro que os ventos se extinguirão e este Todo se torna aparente.
Isto sendo o caso a simples estória de um grande homem é de pouco valor. Realmente, por maior que seja sua Verdade e sábio seu ensinamento, se ele for exaltado e adorado, isto em si mesmo pode se tornar a maior e mais impenetrável barreira, bloqueando a própria liberdade que é ensinada. Procurar imitar o “Buda” ou tentar ser como o “Buda”, seria como cortar nossos pés quando aprendemos a caminhar, ou retirar nossos olhos quando tentamos ver. Colocar o Buda num pedestal, vendo-o como o único entre os homens, incomparável, do outro mundo, é abrir um abismo de profundidade insondável no próprio chão em que pisamos. Religião é considerada por muitos ser um porto ou refúgio para protegê-lo das tempestades da vida. Uma cantata diz em triunfo: “Uma poderosa fortaleza é nosso Deus”: mas este não é o caminho do Zen.
Com isto em mente alguém pode perguntar, qual é então o valor desta vida de Shakyamuni? Você que realiza iluminamento será capaz de dizer: “Se aparecerem o Honorável Shakyamuni e o Grande Bodhidharma, eu os cortarei instantaneamente, dizendo: Por que você vacila? Você não mais precisa deles.” Com tal objetivo em vista porque se preocupar sobre esta estória?
É porque a vida de Gautama é a vida de todo homem, de você e eu, seja homem ou mulher. Nisto está a grande inspiração.

“2 500 anos atrás uma criança nasceu, o filho de um rei.”

Há uma parábola contida em ambos o Sutra do Lótus do Budismo e o Novo Testamento do Cristianismo. Ela é lida como segue: “Era uma vez um filho de um rei que deixou sua casa e viajou para longe. Peregrinando ele gradualmente perdeu todas memórias de suas origens. Ele passou tempos duros e tornou-se um mendigo. Para sobreviver ele seguia os porcos que pertenciam aos outros, dividindo os pedaços de frutas e cascas que eram dados a eles. Um dia, no fundo de seu desespero e miséria veio a imagem de quem e do que ele era, de repente se tornou viva uma força que o compelia em sua vida. Ele abandonou os chiqueiros e voltou para casa de seu pai.”
Cada um de nós é o filho ou filha de um rei e cada um é o herdeiro de um reinado, o qual não é menor que o Universo completo. O rei é a verdadeira natureza de cada um de nós e todos vagamos longe de nosso verdadeiro lar. Nossa verdadeira natureza é nossa natureza búdica. “Buda” significa acordado e implica “conhecer” a si mesmo. Porque não há “Outro”, porque desde o começo das coisas nós não conhecemos qualquer coisa, porque conhecer e ser não são separados, não há nada a conhecer e nada está do lado de fora: nós somos completos, esta própria mente é Buda. O mundo inteiro é um reinado e todo mundo é rei.

“Em seu nascimento, homens sábios previram que ele cresceria para se tornar um rei ou um monge”

Nós não somos um, nós somos dois, embora estes dois sejam como a face de uma mesma moeda , a qual é um único todo. Ao nascer, nós temos a potencialidade de ser um rei ou um monge, e a batalha básica que nos atormenta nossas vidas está entre estas duas faces. Quando nós alcançamos o mundo exterior, alguma coisa dentro é negada. Quando nós introspectamos, nós sentimos o desperdício de tempo e nos sentimos desconsolados. Nós atingimos um ponto onde não importa o que sentimos, nós devemos estar fazendo alguma coisa. Um dos mais pungentes e penetrantes sentimentos que abundam é como está passando a vida. Aqueles que estão atribulados nos afazeres da vida almejam um mundo de solidão, paz e tranquilidade. Aqueles que vivem afastados do mundo almejam por ação e ocupação. Enquanto o rei caça e mata outros tipos de ser, o monge vive distraído, encolhido por falta de alimento e luz do sol; enquanto o monge penetra cada vez mais no reino do conhecimento e maravilha, o rei consome-se flácido e coluna caída, seu vigor gasto, seu espírito aventureiro temeroso e hesitante. É como se ao nascer, nós fôssemos mortalmente feridos.

“Seu pai, não querendo que seu filho suportasse as agruras da vida ascética e querendo assegurar a continuidade de sua linhagem real...”

Este é o papel que os pais assumem: protetores. Um bebê nasce, é fraco e sem ajuda, mas dotado por natureza com uma arma mortal – o sorriso. Nós podemos levar uma vida errante, dissoluta e não ligar muita atenção a nada. Nos casamos e então um bebê nasce. A princípio é como um vegetal – úmido. Mas com seu sorriso ele prende a vida inteira de pai e mãe. Eles trabalham e sofrem para manter aquele sorriso. O sorriso que faz o mundo inteiro radiante. O sorriso de uma criança é algo perfeito e através dele nós vislumbramos nossa verdadeira natureza, nossa vida no Uno.
É natural que Sudhodana, o pai de Sidarta, quisesse proteger seu filho de uma vida de privação e ascetismo. Não há sofrimento maior que o sofrimento de ver o sofrimento de nossa própria criança. Nosso sofrimento nos faz lutar e usá-lo como uma fonte de energia, transmutando. O sofrimento de nossa esposa é pior mas nós podemos conversar juntos, consolar e encorajar ou juntos passear no vale. Mas quando a criança estarrece em dor, muda e paciente, embora perplexa e com medo, o que fazer? Como fazer voltar o sorriso? A pessoa se preocupa quando ela some, quando ela faz alguma coisa errada, alguma coisa boba, se ela cai nos mesmos buracos ou sobre as mesmas pedras como antes ele mesmo fizera. “Sua criança crescerá para ter sucesso, ser forte e admirada por todos, numa posição de grande poder – ou ele não será nada, desconhecido, pobre e ridículo e humilhado, procurando por aquilo que os imortais não podem achar.” É natural que Sudhodana não quisesse o seu filho um asceta.

“Ele protegeu a criança dos problemas da vida dando a ela todos os prazeres que dinheiro pudesse comprar.”

Esta é a grande tragédia: no grande amor que nós temos por nossas crianças, nós não as deixamos sofrer. Nós dissipamos com elas tudo que possamos adquirir e a criança mais cedo ou mais tarde vai nos detestar e acusar por isto. O problema é que ela está certa: uma vida sem conhecer o sofrimento, uma pessoa que vive na pretensão que dor e ansiedade, humilhação, medo, desespero e culpa, doença e morte, são acidentes ou a presença de alguma força malevolente, é na melhor hipótese uma meia vida, meia morte. Nós corrigimos nossa falta dando à criança o que ela quer. Nossa sociedade toda é assim. Nós somos como crianças que agora se viram e detestam os pais que lhes deu drogas para protegê-las das dores da vida, que fez da morte um fantasma irreal; que nos ensinou sonhos technicolor em caixinhas que podem ser ensaiados nos quartos em camas confortáveis; que nos provê de laranjas e bananas e mel durante todo o ano; que nos dá rodas para rodar e asas para voar às praias e sol e prazer e mar. Realmente nós temos todos os prazeres que dinheiro possa comprar. A tragédia é que a tragédia é sem fim e praticada em nome do amor.

“A criança chamada Sidarta Gautama cresceu e se tornou um homem realizado, hábil nas artes e ciências de seu tempo.”

Uma das crenças mais comuns entre aqueles que não praticam uma religião é que aqueles que o fazem são sobremaneira incompetentes. Eles são considerados alienados que procuram religião como uma fuga, como uma forma de escapar dos lados ásperos da vida com os quais eles não conseguem lutar. Sem dúvida há muitos que usam religião como fuga. Mas há muitos outros que usam trabalho, sexo, amizade, de fato qualquer coisa como um escudo contra a dor de suas vidas. Mas porque alguns fazem assim não significa todos. Porque alguns trabalham para evitar encarar certos problemas, isto não pode ser generalizado. Está claro nas estórias da vida de Shakyamuni que ele não fugia à luta.
Contudo, ao mesmo tempo, nós devemos ser cuidadosos em não cometer o erro de acreditar que atitudes e habilidades como o mundo conhece sejam requisitos para “progresso” no caminho espiritual, nem que eles sejam o resultado de trabalho sobre si mesmo. Nossas aptidões e habilidades são dados a nós – eles desdobram como a pétala de uma flor que se abre. As vezes as circunstâncias são corretas e tudo flui e nós gostamos de crer que fomos os autores. Outras vezes nada vai bem. Nós nos esforçamos, trabalhamos, suamos mas nada se ajusta e tudo se mantém aparte. Então nós preferimos acreditar que fomos vítimas de um destino sobre o qual não temos controle.

“Ainda jovem casou-se e teve um filho.”

Então o ciclo está completo. Começando como criança, agora é pai. Começando como protegido, agora torna-se protetor. A roda da vida é inexorável, ela gira e nós presos a ela giramos também.
Alguns dizem que em seu nascimento, Buda estava consciente que ele tinha uma grande missão a cumprir e sua vida de jovem foi vivida em plena consciência desta missão. Mas os fatos sugerem outra coisa. Gautama casou – ele seguiu o caminho de todos os homens. Ele casou por todas as razões que homens e mulheres se casam e quando ele casou ele provavelmente acreditou que no casamento ele alcançaria felicidade finalmente.
É verdade que às vezes é difícil que riqueza e contentamento sejam bem relacionados um com o outro. “se somente eu tivesse mais dinheiro”, “uma casa diferente”, “um melhor emprego”, “uma esposa mais compreensiva”, “mais roupas”... a lista é interminável. A Bernard Shaw é reputado ter dito que o valor de uma educação universitária é que ela nos mostra que não se perdeu nada não a tendo feito. O mesmo pode ser dito com relação a riqueza. Alguém pode estar podre de rico e ainda sentir falta de dinheiro; alguém pode ter um bom emprego e ainda reclamar; pode ter feito um bom casamento com lindas crianças e ainda sentir solidão. Tudo isto nós já vimos. Nós temos visto que sempre e sempre quando entramos num estado de ilusória promessa de satisfação e ainda somos traídos pelo próximo sonho de que somos vítima.

“Mas Sidarta crescera atormentado, insatisfeito e se sentia limitado pelos prazeres que seu pai o cercava e desejava saber mais da vida que aquela limitada pelas paredes das vilas em que vivia.”

É dito que se a natureza é atirada pela porta da frente, ela retorna pela janela. É tolo crer que nós podemos proteger a nós mesmos ou a outros do sofrimento da vida. Aconteceu a um negociante ouvir falar que Yama – o Deus da morte – viria até ele no próximo dia. O homem começou a tremer e suar e esfregar suas mãos, sem saber o que fazer. Eventualmente ele encontrou uma solução. Se Yama viesse até ele, então ele sairia quando Yama fosse vir. Ele viajaria para um país distante e se ocultaria entre o povo de lá e Yama nunca o encontraria. Assim ele comprou as passagens de avião, tomou o vôo e breve ele estaria no meio da multidão do país para o qual fugira. Quando ele penetrou na multidão, ele olhou em frente e vindo em sua direção com um largo sorriso, era Yama. “Ah! Você está aqui”, disse Yama, “Nós temos um encontro para hoje e eu pensava em como chegar em sua casa a tempo. Agora você está aqui!”
Os melhores planos concebidos por ratos e homens frequentemente vão abaixo, como Robert Burns diz. Não porque haja alguma coisa inerentemente errado com o plano. Os ratos que Burns encontrou no campo tinham escolhido o lugar perfeito para seu ninho e construíram o ninho com o maior cuidado. Mas havia outro plano, o fazendeiro queria colher sua safra e assim fazendo destruiu o ninho do rato e seu plano.
Cada um de nós é sujeito a seu próprio karma, isto é sujeito à totalidade de forças que o coloca em movimento, instante por instante, em cada ato, escolha e decisão que fazemos. Há uma lei inexorável que é maior que qualquer esforço que nós fazemos sobre nós próprios ou sobre outros para subvertê-la. Pois tudo tem uma causa e para cada causa há um efeito.

“E ele cresceu sem paz.”


Inquieto, a sarna coçando. Quanto mais se coça a ferida, pior fica. Esta falta de paz é precursora da investigação real. No fundo de nós mesmos alguma coisa mexe. Nos admiramos que nem todos são iguais. Valores que amávamos, atividades que gostávamos, idéias, tudo se reduz a pó e cinzas. Esta inquietação gera pânico e nós vemos coisas que nós superestimávamos antes. Elas se apegam a nossos olhos e nós não as podemos ocultar mais. Para o momento, elas são Realidade, enquanto tudo o mais são sombras que mexem.

“Ele convocou seu criado e penetraram no mundo rude e confuso do homem comum, e neste mundo encontraram “um homem doente, um homem idoso e um homem morto.”

Doença, velhice e morte – a inevitável sorte de todos. Como podemos tentar livrar-nos desses espectros! Nós gostamos de pensar que estes são acidentes que ocorrem aos outros. Doença é uma interrupção na vida, alguma coisa para a qual não temos tempo. Velhice nós descartamos com cosméticos, exercícios, planos e otimismo. A morte pode ser enterrada sob elaborados rituais, acessórios caros, belas flores. Mas estes três ainda podem pôr suas mangas de fora – um colapso aqui, uma dor ali e admiraremos o pescoço vermelho de Yama.
Na idade dos 40, muitos fazem coisas bobas: abandonam empregos seguros e começam novas carreiras; eles se divorciam, desenvolvem estranhas neuroses, alguns mesmo morrem. Por anos eles evitaram um encontro com o trio apocalíptico, andando a pé, ginástica, fazendo tricô: planos, objetivos, hipotecam o futuro até que se esgote o tempo...

“Finalmente ele encontra um monge peregrino.”

Quê encontro! O monge tivesse outra rota e quão diferente a história do mundo teria sido. Mas este encontro tinha sido determinado antes de seu tempo: era o karma de Buda – nosso karma.
O pior sofrimento é sofrer sem sentido. O sofrimento de vacas, cavalos, cachorros, elefantes, crocodilos, isto é terrível porque sem sentido. Mas sofrimento em seres humanos pode ser seguido por um encontro com um monge, um homem santo, com um homem que desistiu de tudo na certeza que ele encontraria a verdade. Sofrimento prepara o caminho para o encontro, o encontro com o monge é inevitável porque o monge não é outro que o chamado de nossa verdadeira natureza.

“Uma noite ele se despediu de sua esposa e filho enquanto dormiam e refugiou-se na floresta para tornar-se um asceta peregrino.”

Este foi o caminho usado na Índia e ainda é seguido nos nossos dias. Como exemplo disto, J.G.Bent, um matemático britânico, filósofo e estudante de Gurdjieff, relata seu encontro com Shivapuri Baba, um asceta indiano que morreu em 1 950 com 132 anos. Shivapuri deixou sua casa aos 18 anos e permaneceu na floresta por 25 anos, sozinho, até obter um grande iluminamento. Incidentalmente após seu iluminamento ele se reabilitou na sociedade e então na idade de 60 anos viajou pelo mundo e visitou um grande número de pessoas eminentes da época.
Ramana Mararhi, na idade de 17 e após um grande acordar também deixou a casa de seus pais para viajar para o Monte Arunachala, onde ele permaneceu para o resto de sua vida.
Mas estórias como estas devem ser entendidas muito cuidadosamente. Não é apenas uma questão de abandonar mulher e família ou pai e mãe. Algumas pessoas que não compreendem a intenção e estado de mente do Buda, se admiram como um ato de irresponsabilidade pode ter um resultado de valor. A lei do karma rege que de uma má ação, o mal mais cedo ou tarde fluirá. Mas a ação do Buda estava de acordo com seu karma. Sua família e esposa estavam preparados. Pessoas que se preocupam em abandonar seu lar ou emprego ou começar de novo, mais provável não estarem preparados para o ato.
Mas não é o fato de deixar casa que é mais importante. É o ato de renúncia. Para começar seriamente um caminho espiritual é de importância que se “renuncie ao mundo”. Isto pode ser feito mesmo sem óbvia mudança na rotina ou atividade. O voto de renúncia é realizado quando se vê inequivocamente que o “mundo” e tudo o mais que o compõe não vale um décimo das coisas do espírito. A pessoa então se vê nua e só, quando observa o mundo. William James diz que o caminho religioso começa com um grito de socorro. O momento de renúncia pode ser um momento terrível e se se sente fraco só então se grita por ajuda.

“Então estudou com os sábios da floresta, mas após aprender o que eles ofereciam, ele ainda se sentia insatisfeito e sem calma.“


Seus mestre foram Alara Kalama, Rama e Udaka. O primeiro, Alara, ensinou um caminho para se alcançar o reino do Vazio, mas não mais. Rama ensinou ao Buda a ir além, ao reino onde não há percepção e Udaka levou-o um pouco mais longe. “O Reino do Vazio” e “O reino onde não subsiste percepção”, são ainda no reino da consciência e forma, eles ainda estão baseados em alguma coisa que conheça o vácuo ou que vá além das percepções. Há muitas formas de meditação as quais nos levam para fora de nós mesmos, para assim dizer. Algumas requerem grandes disciplinas e esforço. Mas liberação é verdadeira somente quando se manifesta na nossa vida diária. “Qual é a Verdade?, perguntaram a Joshu. “Quando estou com fome, eu como, quando estou cansado, eu deito”. Estados de mente que são exaltados, cheios de glória, luz e hosanas são um pico mental que de repente mergulha ao fundo. Estados físicos atingidos tenazmente em silêncio e isolamento são simplesmente ginástica mental e assim como a prática de ginástica física não leva a paz final, assim levitação e outras são sem valor para a Grande Liberação.

“Ele peregrinava e encontrou alguns ascetas e se juntou a eles e praticou todas as práticas austeras.”

Gautama praticou por seis anos e atingiu um ponto em que comia apenas um grão de arroz cada dia.
Zazen praticado sem a orientação de um mestre experiente pode degenerar numa foma de ascetismo. Há o seguinte mondo entre Nangaku e Baso:
Nangaku observou Baso praticando zazen e perguntou a ele o que estava fazendo. Baso replicou que ele tentava se tornar um Buda. Nangaku pegou uma telha e começou a amolá-la com uma pedra. Desta vez Baso perguntou a Nangaku o que ele fazia. Nangaku disse que a estava polindo para torná-la um espelho.
“Como pode você polindo a telha fazê-la um espelho?”, Baso pergunta.
“Como pode você sentando tornar-se um Buda?”, retorquiu Nangaku.
Baso então pediu: “Que devo eu fazer então?”
Nangaku respondeu: “Se você dirige uma carroça e ela não segue, você chicotearia a carroça ou o boi?”
Baso não respondeu.
A moral da estória não é como muitos acreditam, abandonar o zazen, mas evitar usar o zazen como forma de ascetismo.


“Ao fim e próximo à morte, ele lembrou de um tempo em que ele via seu pai e os camponeses lavrarem a terra. Naquele momento ele se sentiu uno com a dor e o sofrimento do mundo.”

O iluminamento antes do iluminamento. O repentino gosto de liberdade que se estabelece por um momento, depois foge como um pássaro assustado. Ele se manifesta em várias situações: numa tarde, num feriado, ouvindo música, se apaixonando, num momento de intensa amargura, na doença. Ele vem... e vai. É tão familiar e nos prende a respiração no seu frescor. Se vê a existência num flash mas é bastante. O dia virá em que este encontro amadurece e como uma veia na pedra age como um guia e mais e mais nossas tendências tomam uma só direção até que somos compelidos por uma força irresistível a procurar o acordar.

“Lembrando como esta experiência abria as portas para uma consciência mais profunda do Um e do Todo, ele resolveu desistir de sua prática ascética, a qual poderia levá-lo somente à morte e procurar reviver esta Unidade.”

Este é um grande momento. Com um toque de verdade tudo se torna tão simples e óbvio. Tão frequentemente nós ouvimos “desista de seu esforço” “não perturbe a mente” “apenas ponha abaixo sua carga”, mas tão frequentemente nós adotamos técnicas, caminhos, nós tentamos isto ou aquilo. É abandonando tudo, pelo sacrifício total de tudo, mesmo pelo que prezamos mais – nossa prática de disciplina espiritual – que nossa intuição mais profunda pode ser acordada e através desse despertar o véu da dualidade será penetrado.

“Nesse mesmo momento uma garota, Nabadala, a pastora, passava por perto e vendo Sidarta fraco por falta de alimento, deu a ele leite de cabra para beber. Recuperado, Sidarta foi embora procurando um lugar adequado para meditar. Ele veio até uma árvore de nome Bo. Sotya, um cortador de grama deu-lhe um pouco de grama para sentar-se, Sidarta tomou a grama e espalhou-a sob a árvore.”

Kapleau nos Três Pilares do Zen diz, “Você pode confiar nisto: uma vez que você entrou no caminho de Buda com sinceridade e zelo, bodhisatvas aparecerão no seu caminho para ajudá-lo.

“Então, sentando, ele fez o voto: “Pode minha carne secar e cair de meus ossos, podem meus ossos se esmagar, ainda assim eu não mexerei desse assento até que eu atinja completo iluminamento”.


Uma narrativa desta passagem diz que “ele sentou de pernas cruzadas numa postura imbatível, da qual nem mesmo a carga de cem raios o teria desalojado”. Este é o momento supremo. Com tal resolução que poderia estar errado? Não apenas o corpo estava imóvel, a mente também. Corpo/mente como pedra. Pensamentos como moscas atacam esta resolução em vão. O mundo inteiro transparente. Mesmo quando se senta no meio da confusão e barulho, nada mexe, nem mesmo a consciência de que nada mexe.

“Então durante a longa noite ele foi tentado por Mara.”

Mara é o demônio. A palavra Mara é derivada de sânscrito Mri: Morte. Os filhos de Mara são: capricho, alegria e lascívia; suas três filhas: descontentamento, prazer e sede. Os nomes das filhas em sânscrito são Rati, Arati e Trsna. Rati significa delícia sexual ou sensual. Arati quer dizer frigidez. Trsna é sede, a insaciável.
Aqueles que têm sentado em sesshin ou alguma prática séria são familiares com Mara. Os medos sem conta; as brincadeiras oferecidas por um intelecto ocioso; o rir e gritar; a beligerante frustração; a aridez seca; as imagens sexuais; o querer não importa o que, apenas querer...
Não importa a hora, é sempre noite quando se encontra com Mara. A incansável persistência de Mara rompendo as resistências, retirando as barreiras, seduzindo aos atalhos, à inconsequência, é como um exército demoníaco destruindo a imperturbabilidade da mente no Uno.

“Ao amanhecer, ele contemplou a estrela da manhã; então ele se sentiu completamente iluminado e exclamou “maravilha das maravilhas, todos os seres são dotados de Natureza Búdica.”

Para o Zen Budista este é o coração da estória da vida de Buda. Este é o grande milagre – o retornar ao Uno. É o círculo completado. O acordar de uma pessoa é o acordar do universo todo: se alguém pode acordar, qualquer e qualquer coisa sensível pode acordar.
Zen Budistas veneram Shakyamuni Buda porque ele foi uma pessoa notável e através de seus grandes esforços e resolução inquebrantável ele abriu um caminho e ensinou o caminho a todos que o quisessem ouvir. Central ao caminho é o acordar e a integração do acordar na vida diária. A veneração de Shakyamuni portanto também significa abrir-nos para a grande possibilidade de acordar. Ler a estória simplesmente como a narrativa da vida de um grande homem seria perder a essência; lê-la apenas como uma afirmação do despertar seria perder o fato.

A PROCURA POR DEUS

O Departamento de Religião me convidou para, na série “A PROCURA POR DEUS”, falar para vocês sobre o Zen Budismo. Eu aceitei porque acredito que o Darma de Buda, assim os budistas chamam seu ensinamento, tem relevância terapêutica para a guerra do Vietnã, a luta pelos direitos civis, a ingestão de ácidos lisérgicos, pílulas, bebidas alcoólicas e muitas outras doenças da nossa sociedade contemporânea.
Recentemente, a nação ficou chocada pelos assassinatos brutais de Linda e Groovy, dois assim chamados hippies que viviam no East Village, em Nova York. As violentas mortes desses dois jovens criou uma imediata onda de ultraje e indignação por parte de jornais e revistas, os quais usaram seus assassinatos como um pretexto para censurar todo o fenômeno hippie. Muitas revistas e jornais são leais defensores da guerra que a América do Norte está promovendo no Vietnã, e parecem sentir que há uma inerente diferença entre matança em larga escala e assassinatos individuais. O ponto olhado com vista grossa é que embora a violência possa manifestar-se numa variedade de formas, sua causa-raiz é sempre a mesma em todos casos: um grande senso de “eu” e “meu”, o desejo por poder e dominação, o que, por seu turno, dá origem a sentimentos de medo e alienação tão poderosos a fazer homens viciosamente destruir outras criaturas e mesmo até si próprias.
Mais tarde eu terei algo mais a dizer sobre ego. Para o momento, deixe-me observar que a despeito da nossa violência doméstica e externa, nós Americanos somos ainda a esperança da Humanidade. Em meus treze anos de residência no Japão e extensas viagens na India, Burma, Ceilão e Tailândia, eu ouvi numerosos comentários de asiáticos familiarizados com a cena na América e na Europa, que a onda do futuro está, não na Ásia ou na Europa mas na América. Se eu não acreditasse nisso eu estaria ainda no Japão e não de volta ao meu país. Nós estamos sem dúvida lentamente começando a virar nossas energias criativas para dentro, e se nós podemos viver através do presente inferno, poderemos ainda transformar a América na terra bíblica de leite e mel. Há esperança para nós no ditado de Lutero: “Aquele que é mau o bastante para viver no inferno, é bom o bastante para ir para o céu.”
Evidência para apoiar esta visão otimista do potencial espiritual da América não está faltando. Ela pode ser encontrada numa série de conferências como esta, na qual os promotores devem ser congratulados por sua iniciativa e visão em trazer ante vocês representantes de quatro grandes religiões do mundo. Eu estou honrado de ser um dos conferencistas e espero possa apresentar para vocês uma clara pintura da grande estrutura de pensamento, sentimento e sabedoria conhecida como Budismo. Esta religião abrange um terço da raça humana, incluindo a grande maioria dos asiáticos, e atualmente está se projetando nos corações e mentes de numerosos homens e mulheres no Ocidente.
O tópico assinalado para esta série de conferências é “A PROCURA POR DEUS” e eu me encontro já num dilema, pois no Budismo, especialmente no Zen, não há nada a procurar, muito menos um Deus. O problema fundamental no Zen não é Deus mas sim o homem. Não o que é Deus, mas o que sou Eu? Por quê eu nasci, por quê devo morrer? Não encontrar Deus mas realizar a minha natureza original, este é o principal interesse do Zen. O seguinte diálogo Zen ilustra o problema:
Um monge chamado Etcho perguntou a um Mestre Zen, “Qual é o significado de Buda?” “Você é Etcho!” retrucou o Mestre.

Dostoievsky numa carta para seu irmão escreveu: “É terrível olhar um homem que tem o Incompreensível dentro de si, não sabe o que fazer com ele, e se senta brincando com um brinquedo chamado Deus.”
Brinquedos são para divertimento de crianças, não de adultos. Zen demanda maturidade e responsabilidade de seus adeptos. Ele nos adverte a sermos adultos, a ficarmos apoiados sobre nossos próprios pés, não nos de Deus ou nos de alguém além e a responder completamente ao que é mais verdadeiro em nós mesmos. Nossa liberdade e espontaneidade inatas não podem ser acorrentadas a um Deus ou a Buda. Os Mestres Zen são conhecidos por gritar, “Você deve matar o Buda!”, não como um gesto dramático de desafio, mas como uma inescapável consequência de seu amor de liberdade. Contudo, uma palavra de advertência: Somente aquele que tem a reverência e humildade de prostrar-se perante o Buda pode destruí-lo quando ele se torna uma ameaça para a completa liberdade interior. Verdadeiramente, “Zen é uma religião de respeitoso desrespeito e desrespeitoso respeito.”
No Zen , nós dizemos, não há a nada a procurar . Procura implica algum objetivo ou objeto fora de nós mesmos e um sujeito-Eu que faz a procura--uma noção dualista que fratura nosso Todo inerente. Desde que nossa verdadeira- natureza não tem insuficiência, como um círculo ao qual nada pode ser acrescido e do qual nada pode ser subtraído, o que então há a procurar? Muitas pessoas, que orgulhosamente se chamam ‘buscadores’, tornam-se apegados a uma idéia de busca, com o resultado que elas nunca encontram. Em um diferente contexto, Picasso uma vez afirmou, “Outros pintores procuram; Eu encontro.”
O que no Ocidente chamamos Budismo tem sua origem, historicamente falando, na pessoa e vida de Sidarta Gautama, mais tarde conhecido como Buda Shakyamuni, isto é, o sábio do clã dos Shakya. Entre os budistas ele é reverenciado não como uma divindade ou um salvador que toma sobre si os pecados dos outros, mas como alguém completamente desperto, um ser humano completamente perfeito que atingiu liberação de corpo e mente através de seus próprios esforços e não pela graça de um ser sobrenatural. As pessoas frequentemente lhe perguntavam, “Você é um deus? “
“Não.”
“Um anjo?”
“Não.”
“Um santo?”
“Não.”
“Então, quem você é?”
“Eu sou desperto”, ele replicava, e isso é realmente o significado do termo ‘Buda’: alguém desperto ou iluminado para sua própria natureza e toda existência.
Se o Budismo começa com Buda Shakyamuni, no Zen o foco é no seu despertar, ou supremo iluminamento, um evento que une todas as seitas do Budismo, sejam elas da tradição Mahayana (‘Grande Veículo’), do qual o Zen é o coração, ou da tradição Hynaiana, algumas vezes conhecida como Teravada ou Budismo do Sul. Localizado na escala limitante do tempo, o iluminamento do Buda ocorreu em 08 de dezembro, no ano 528 AC. , quando ele tinha trinta e cinco anos. Especialmente entre os zen budistas esta memorável ocasião é observada não tanto como um tempo de júbilo mas como um tempo de renovado esforço para realizar nossa verdadeira natureza assim como o Buda realizou a sua.
Após seu grande despertar, o Buda é lembrado por exclamar, “Maravilha das maravilhas! Intrinsecamente todos seres vivos são completos , dotados com virtude e sabedoria, mas por por causa de seus pensamentos delusórios eles falham em perceber isto.” Eu devo retornar a este termo ‘delusório’, pois muito do ensinamento Zen revolve sobre ele. Aqui deixe-me apontar que no Zen Budismo alguém que tenha genuinamente realizado sua natureza-própria atingiu o primeiro estágio do estado de Buda, desde que em substância esta realização não é diferente da do Buda. É somente no Grau do iluminamento do Buda, tão bem como na perfeição de seu caracter e personalidade que é, em sua equanimidade, compaixão e sabedoria - que o Buda se eleva sobre os homens de iluminamento mediano. Talvez seja como comparar um pintor de domingo com Rembrandt. Ambos são artistas, mas quão diferentes suas conquistas.
A substância desta natureza-própria pode ser comparada à água. Uma das características salientes da água é sua conformabilidade: quando posta num vaso redondo ela se torna redonda, quando posta num vaso quadrado ela se torna quadrada. Nós temos também esta adaptabilidade, o Budismo nos ensina, mas porque estamos apegados, acorrentados, por causa da ignorância de nossa natureza-própria, nos foi confiscada esta liberdade. A mente de um Buda é como a água que é calma, profunda e cristalina, e sobre a qual a ‘lua da verdade’ reflete-se completa e perfeitamente. A mente de um homem comum, por outro lado, é como água escura, constantemente perturbada pelos ventos do pensamento delusório e não mais capaz de refletir a lua da verdade. A lua, não obstante, brilha firmemente sobre as ondas, mas como as águas estão turvas, nós somos impedidos de ver seus reflexos. Assim nós levamos uma vida frustrante e sem significado.
Como, então, poderemos trazer a lua da verdade para iluminar completamente nossa vida e personalidade? Nós precisamos inicialmente clarificar esta água, acalmar as ondas surgentes estancando os ventos do pensamento discursivo. Em outras palavras, nós carecemos libertar nossas mentes da escravidão do pensamento conceitual. A maioria das pessoas atribui um alto valor ao pensamento abstrato, mas o Budismo demonstra claramente que no pensamento discriminativo jaz a raiz da ilusão. Por esta razão ele tem sido chamado pelos Mestres Zen de doença da mente humana. Isto não obstante não quer dizer que o Zen condena o intelecto. Pensamento abstrato, para ser seguro, é enormemente útil quando sua natureza e limitações são propriamente compreendidas. Mas quando os homens permanecem escravos de seu intelecto, acorrentados e controlados por ele, eles podem então ser chamados doentes, de acordo com o Budismo.
Nos ensinamentos dos Mestres Zen, nós vemos o pensamento conceitual descrito como “curso da vida e da morte”. Idéias randômicas (aleatórias) são relativamente inócuas, mas crenças, opiniões, racionalizações, ideais, sonhos, esperanças- nas quais estamos presos como dentro de um casulo- são todas inibidoras , de acordo com o Zen. Voltaire estava na companhia dos Mestres Zen quando observou, “Opiniões causam mais problemas na terra que pragas ou tremores de terra.” Quanto aos ideais, Chesterton, um ensaista britânico, uma vez escreveu, “Não há outro problema com os americanos exceto seus ideais. Com o americano real, tudo bem. É com o americano Ideal que está o problema.”
Devemos condenar nossos sonhos e esperanças? Eles parecem ser a própria matéria de nossas vidas. Ainda que eles sejam não obstante ilusórios. A doutrina budista sustenta que o passado é irreal porque já passou; o futuro porque ainda não chegou; e o presente porque no momento em que pensamos nele, ele já desapareceu. Apegue-se ao passado e você sacrifica o presente. Espere o futuro e você nega o “aqui e agora”. Pense nem no passado nem no futuro nem no presente, seja apenas uno com cada momento, e você terá os três, não como uma trindade mas como uma unidade indivisível.
Pensamento delusório, então, é a estática mental que nos impede de estar sintonizados com nossa existência diária. Atos delusórios são um apego ignorante ao irreal e ao efêmero o qual nós por equivoco assumimos ser real e permanente. Agora, a mãe da ilusão, de acordo com o Zen Budismo, é a noção de um ego-Eu, a aceitação do si-mesmo como uma individualidade discreta e isolada. Como essa ilusão nasce? Enganado pelos nossos sentidos e nosso intelecto bifurcante em postular o dualismo do eu-e-o outro, nós somos levados a pensar e agir como se fôssemos confrontados por um mundo externo a nós. Assim, no inconsciente a idéia de “EU”, ou si-mesmo, torna-se fixa, e daí afloram tais padrões como Eu detesto isto, Eu amo aquilo; isto é meu, aquilo é seu.
Nutrido por esta forragem, o Ego-Eu imperioso começa a dominar a personalidade, atacando o que quer que ameace sua dominação e apegando-se a qualquer coisa que amplie seu poder. Antagonismo, cobiça e alienação, culminando em sofrimento, são as consequências inevitáveis de nossa falha em reconhecer a natureza e limitações de nosso intelecto e nossos sentidos.
A unidade e interdependência fundamental de toda existência torna-se clara quando nós somos não-iludidos. No Zen isto é expresso por tais afirmações como, “Quando batem em John, Jim chora; quando há nuvens sobre montanhas do sul, chove no norte; quando o sino toca em Rochester, uma aula começa em Tallahasee.” Analise e discrimine, todavia, e a Unidade será quebrada. Um verso de Stevenson, “O mundo é tão cheio de um sem-número de coisas que eu estou certo que nós deveríamos ser felizes como reis” soa como banal, ainda que tenha sua profundidade—se nós podemos assumir que os reis são felizes. Vocês lembram da charmosa lenda persa, citada nas estórias de Maeterlinck, do rei que era muito poderoso mas também muito infeliz. Ele consultou seus videntes para descobrir o que o faria feliz. Após diligente pesquisa eles encontraram a chave para seu dilema. “Sua Majestade”, eles disseram, “deve vestir a camisa de um homem feliz”. Então seguiu-se uma longa busca e finalmente foi encontrado um pobre camponês que era perfeitamente feliz. Só que ele não usava camisa. Hoje ele provavelmente fosse chamado um hippie.
O iluminamento do Buda, eu tenho dito, é suprema, desde que as doutrinas e princípios e filosofia todas emergem dele. Além da irrealidade de um Ego-Eu, o Buda em seu iluminamento percebeu que todos fenômenos condicionados são impermanentes, formas fugazes num fluxo de mudança incessante, que aflora quando certas causas e condições convergem no ser e que passam com o aparecimento de novos fatores causais. O Buda posteriormente percebeu que o substrato da existência é o Vazio, fora do qual todas as coisas nascem sem cessar e para o qual elas eternamente retornam. Esse vazio não pode ser descrito como uma cifra branca ou uma negatividade fria, mas como alguma coisa carregada de poder e criatividade.
A dor, o Buda proclamou, é uma condição inevitável da vida. Nossos sofrimentos, contudo—quer dizer, nossa avaliação da dor quando nos posicionamos à parte—são enraizados no nosso apego ao ego e nos medos e terrores que brotam de nossa ignorância da verdadeira natureza da vida e da morte. “Uma coisa eu ensino”, disse o Buda, “o sofrimento e o fim do sofrimento”. Assim ele foi considerado o Grande Médico. Desde que ele não se contentava meramente em diagnosticar as doenças do homem mas em prescrever remédios precisos, seu Darma pode ser descrito como otimista e prático.
É otimista e não fatalista, como às vezes é julgado, porque ele ensinou que o karma do homem, isto é, o somatório do efeito de seus pensamentos e atos, não é fixo mas variável. O karma pode ser também chamado como a lei da ação, reação e interação, ou simplesmente “lei da causa e efeito”—o que você semeia, você colhe. Exceto para certas circunstâncias como alguém ter nascido homem ou mulher ou preto ou branco, cada um tem o poder de mudar seu karma pelo caminho que ele escolhe de aceitar ou rejeitar a vida. Deixe-nos dizer, uma pessoa é mandada para a cadeia por um crime que ela cometeu. Aqui nós vemos a ação da causa e efeito. A pessoa pode então decidir a arrepender-se e tornar-se dentro da lei ou determinar-se a ser mais cuidadoso para não ser pego da próxima vez. Ou ela pode usar aquele confinamento como uma ocasião para uma disciplina espiritual como zazen, uma boa leitura, assim como fez Oscar Wilde quando foi para Reading Gaol. Similarmente, alguém nascido doente pode se tornar melhor com atenção a sua saúde, enquanto alguém pobre tem a possibilidade de se tornar rico. A doutrina do karma, uma das pedras fundamentais do Budismo, é matéria tão complexa que estas breves observações dificilmente lhe fazem justiça.
A prescrição do Buda para o fim do sofrimento consistia de muitos remédios, o principal deles sendo a meditação. No Zen, a meditação toma uma forma especial chamada zazen, uma palavra japonesa que significa “sentar com uma mente concentrada”. Zazen, o processo de concentração e absorção pelo qual a mente é acalmada e dirigida a um único ponto, é o coração da disciplina Zen. O Mestre Zen japonês, Mestre Dogen, chamava o zazen “o portão da liberação total”. Zazen, contudo, envolve muito mais que meditação quieta. É uma intensa luta interior para ganhar controle sobre a mente e então usá-la, como um míssil silente, para penetrar a barreira dos cinco sentidos e do intelecto discursivo. Este esvaziamento da mente de idéias randômicas estabelece aquele equilíbrio interior que os ventos do pensamento conceitual não podem mais abater.
O termo “lavagem cerebral” é uma palavra pesada, mas no sentido de purificar e libertar a mente da escravidão a idéias fugitivas, inúteis, nós podemos chamar zazen de “lavagem cerebral”. Talvez isto ficará mais claro se eu contar a vocês brevemente das experiências de dois americanos com o zazen. O primeiro, após praticar zazen num período curto, disse, “Eu sei que a disciplina Zen envolve libertar a mente de todas crenças e valores fortemente arraigados com o fim de torná-la como uma lousa limpa. Mas, olhe, eu passei quatro anos adquirindo educação em Harvard. Esse conhecimento custou-me um inferno de esforço, meu e de meus pais. Se você pensa que eu vou jogar tudo fora por uma porcaria chamada satori, você está enganado. Para falar a verdade, eu prefiro ler sobre Zen que praticá-lo; dessa forma eu não perco, eu ganho.”
O segundo disse, “Algumas pessoas me perguntam, “O que você ganhou com o Zen?” Eu respondo que na verdade eu perdi e o que quer que eu ganhe provém dessa perda. Eu perdi muito do que não era eu mesmo e como resultado o peso do falso ego que eu carregava se tornou mais leve. Infelizmente, eu ainda não sei o que eu realmente sou, mas sei mais o que não sou, e isso significa que eu posso fluir mais facilmente através da vida.”
Após ouvir isso alguém pode perguntar, “De que maneira alguém pode fluir mais facilmente?” Energias que eram dissipadas em esforços compulsivos e ações sem propósito são agora preservadas através do sentar correto Zen; e no ponto que a mente atinge concentração, ela não mais dispersa suas forças na proliferação incontrolada de pensamentos vãos. O sistema nervoso inteiro relaxa, tensões interiores são eliminadas e o tônus de todos os órgãos fortalece. Com corpo e mente consolidados, focados e energizados nossas emoções respondem com crescente sensibilidade e nossa vontade afirma-se com maior força de propósito. Nós não somos mais dominados pelo intelecto às expensas dos sentimentos, nem levados por emoções não checadas pela razão ou vontade.
Note a ênfase na vontade, pois sem força de vontade o progresso é impossível. Dostoievsky reconheceu isso quando escreveu a seu irmão, “Quão terrível é perceber somente o rude véu sob o qual o Todo desvanece! Pensar que um simples esforço da vontade seria suficiente para demolir aquele véu e tornar-nos unos com a eternidade—saber tudo isso e ainda viver como a última e menor das criaturas...Quão terrível!”
Para demolir o ‘véu’ demanda mais que sentar com dedicação. Requer uma vida de atenção e consciência. Para o homem comum, cuja mente é como um jogo de palavras cruzadas, reflexões, opiniões e preconceitos, atenção pura é virtualmente impossível. Sua vida é centrada não na realidade mas nas Idéias sobre ela. Assim o Buda nos adverte, “O que é visto deve ser apenas o visto; o que é ouvido deve ser apenas o ouvido; o que é sentido (como cheiro, gosto ou tato) deve ser apenas o sentido; o que é pensado deve ser apenas o pensado.” Se algum de vocês acha isso fácil, tente com vocês mesmos. Na próxima vez que forem comer, barbear ou ir ao banheiro, veja se podem realizar estas funções sem a intervenção de pensamentos vãos. Você será excepcional se conseguir.
O objetivo da disciplina Zen, então, é focar completamente em cada objeto e em cada ação, limpando a mente de pensamentos estranhos e a permitir eventualmente ver as coisas como elas verdadeiramente são. A estória seguinte ilustra isso. Um Mestre Zen caminhava nos bosques com um dos seus discípulos. De repente um coelho branco cruzou na frente deles. Tirando vantagem da ocasião, o Mestre perguntou, “O que você diria daquilo?” “Foi como um deus!” exclamou o monge. “Você é um homem crescido mas fala como uma criança,”, replicou o Mestre. “Tudo bem, então,” disse o monge, “o que você diria sobre ele?”
“é um COELHO,”, respondeu o mestre.
Um coelho é um Coelho é um COELHO! Mas quantos sabem o que quer dizer isso? Tal conhecimento não chega através de simples iluminamento mas demanda anos de prática dedicada. Assim mestres Zen dizem, “O treinamento real de um praticante começa apenas após seu iluminamento.”
Quando a Dogen, que mais tarde se tornaria um grande mestre Zen, foi perguntado o que ele aprendera após três anos de treinamento Zen na China, ele respondeu, “Que meu nariz é vertical e meus olhos horizontais.”
Zen Budismo, vocês vêem, é muito simples.

(Philip Kapleau, Mestre Zen nos E.U.A, abril de 1968)

O QUE É O ZEN


Um peixe foi até a Rainha dos peixes e perguntou : - Eu sempre ouvi falar do mar, mas o que é o mar ? Onde está ele?

A Rainha respondeu : - Você mora, move-se e tem seu ser no mar. O mar está dentro e fora de você; você é feito de mar, você veio do mar e no mar terá seu fim.


O que é o ZEN?
O que é o UNIVERSO?
Na realidade, o que sou EU?
Que é a VIDA? O que é a MORTE?

Assim explicou DOGEN ZENJI, Mestre Zen do Século XIII:

"ESTUDAR o Budismo é estudar a si próprio; ESTUDAR a si próprio é esquecer a si próprio; ESQUECER a si próprio é estar identificado com todas as coisas;
ESTAR identificado com todas as coisas é tornar-se a própria VERDADE."


Considere as vidas dos pássaros e dos peixes. O peixe nunca se cansa da água; mas você não sabe a verdadeira mente de um peixe, pois você não é peixe. Os pássaros nunca se cansam dos bosques, mas você não conhece seu espírito real, pois você não é um pássaro. É o mesmo com a vida poética ou religiosa : se você não a vive, você não sabe nada sobre ela.

“O cisne novo encontra a água, mas o homem nasce na ignorância de seu elemento”

Mestre Dogen (1200-1253), fundador da Escola Soto Zen no Japão, expressa isso mais poeticamente :

“O pássaro aquático voa aqui e ali, sem deixar rastro, ainda que seu caminho ele nunca esqueça

Zen, embora longe de indefinido, é por definição indefinível, porque é o princípio ativo da própria vida. O sol passa através das poluições e se mantém tão puro quanto antes, assim o Zen passa através de nossas definições e permanece Zen como antes. Como nós pensamos, ele parece obscuro, mas "obscuro com luz excessiva". É como Alice no País das Maravilhas, o mais que nós corremos atrás, mais nos afastamos dele. Ainda que leiamos livros e mais livros, esperando encontrar em alguma página, em uma sentença, a chave de uma porta é apenas uma alucinação. O Zen diz: Caminhe ! Não se importe com a chave, a fechadura ou a barreira da porta. Apenas caminhe!

“Seu nome é Agora . . .sua essência é Tudo”

A diferença entre Zen na vida quotidiana e Zen na Arte, é que Arte é como uma fotografia (a música é como um filme), que pode ser olhada quando nós desejamos. Ou podemos dizer como Goethe que chamou arquitetura de música cristalizada, arte é Zen cristalizado.

A verdade está em toda parte, mas é mais aparente na ciência. A beleza está na lata de lixo e no açougue, mas é mais visível na lua e nas flores.

"No caminho da montanha, o perfume das flores silvestres, - e, súbito, o sol nasce!”

Zen é uma questão de coragem, mas Zen não é coragem. Um ladrão correndo feito doido de um cão feroz pode ser um esplêndido exemplo de Zen. Ele atinge por um momento a " mente de Buda, na qual todas as contradições e perturbações causadas pelo intelecto são inteiramente harmonizadas em uma unidade de ordem superior ". Isto requer, naturalmente que seu trabalho naquele momento seja completamente afim com sua natureza própria, isto é, que seja como um peixe nadando ou o vôo de um pássaro. Rafael não era mais que um pincel, Michael Angelo nada mais que um cinzel. Não há maior prazer na vida ordinária que ver alguém realmente absorvido em seu trabalho, sem qualquer pensamento de seu valor relativo ou absoluto.

Esta perfeição, que nós vemos sempre nas coisas inanimadas, usualmente nos animais, tão rara nos seres humanos, é o que Cristo nos urge atingir:

“Sejam perfeitos, assim como vosso Pai que está no céu é perfeito"


(R.H.Blyth – excertos de Zen in English Literature and Oriental Classics)