sábado, 7 de janeiro de 2012

ZEN E POESIA

Existe uma relação muito direta entre zen e poesia. Entre zen e arte. O zen parece ser uma “religião” de artistas e poetas.

Coloco “religião” entre aspas, porque essa palavra, que em latim quer dizer “re-ligação”(“religio”), é ocidental demais, para designar, por exemplo, o conjunto das crenças hindus, onde há correntes atéias, até o budismo, que é, quanto a deuses, agnóstico. A norma, no Extremo Oriente, é o sincretismo.
Um japonês da Era Clássica, como Bashô, era, ao mesmo tempo, e sem conflitos, budista, confucionista e shintoista.
A exclusividade de uma confissào religiosa é produto tipicamente semita, judaico, cristão e islâmico. As tr6es grandes religiões do Ocidente são excludentes. “Não admitirás outros deuses, ao lado de “Javé, Jesus, Alá”.
Bem mais plásticas são as coisas no Extremo Oriente.
O zen (chinês) resulta da interação entre o budismo hindu e o taoismo sínico. No Japão, esta doutrina não teve dificuldade em assimilar os valores animistas do “shintô” nipônico, culto das forças da natureza, onde todas as entidades naturais (árvores, rios, montanhas, ventos, praias) são “kámi”, “deuses”.
Ponto de confluência de inúmeras “religiões”, ponto-diamante, o zen é uma fé de artistas. Uma fé que valoriza, absolutamente, a experiência imediata. A intuição. O aqui-e-agora. A superfície das coisas. O instantâneo. O pré ou post-racional.

acenda a luz de leve
eu lhe mostro uma beleza
- a bola de neve
(Bashô)

Conforme a tradição, Bashô teria tido, em vida, 3 000 discípulos.
Depois de sua morte, a mínima forma a que conferiu uma chispa definitiva tomou conta do Japão e extravazou até o Ocidente, onde aportou em fins do século passado.
Seu advento com o das gravuras japonesas, que tanto influenciaram os impressionistas da Europa, com fundas marcas na G6enese da chamada “arte mderna”, ameio caminho entre a abstração e o figurativo, feita mais de vazios e lacunas do que de massas e superfícies.
As minúsculas pegadas do haikai são visíveis no Imagismo inglês, liderado por Ezra Pound nos anos 20 deste século. Franceses, ingleses, alemães, até latino-americanos, o praticaram na alvorada do século XX.
Em 1 919, o mexicano Tablada publica sua coleção de haikais: “Un dia...”.
É de suspeitar odores nipônicos no “imagismo” de Garcia Lorca e na brevidade aforismática do poeta espanhol Antônio Machado.
No Brasil, o haikai disse “ô-hayô” com o modernismo de 22.
Por via francesa, evidentemente.
Tiveram caso com ele, nos anos 20, entre outros, Afrânio Peixoto, Ronald de Carvalho e, principalmente, Guilherme de Almeida, que bolou para o haikai uma forma brasileira, chumbada numa estrutura fixa de rimas, como se fosse um micro-soneto parnasiano.
Difícil não deconfiar, de resto, que os poemas-minuto de Oswald de Andrade, micromomentos de superinformação, não tenham inspiração no haikai, que Oswald, claro, conhecia, em versão francesa ou através de contemporâneos e colegas de agitação.
Nos anos 30, até a celebérrima pedra no caminho de Drummond traz consigo um certo perfume zen, que acusa, lá atrás, o haikai de Bashô.
Nem faltam registros de livros de haikai brasileiros nos anos 40. Nos anos 50 deste século, o haikai encontrou-se com a poesia de vanguarda: no concretismo paulista. De comum, entr4e eles, a ênfase na síntese, na brevidade, na inventividade da linguagem.
Poucos criadores brasileiros, porém, prestaram tantos serviços à forma cultivada por Bashô quanto Millor Fernandes. Não contente em popularizar a palavra “haikai”, Millor ainda produziu alguns dos melhores espécies no gênero, entre nós.
Em Millor e seus discípulos, prevalece, é claro, o elemento humoorístico sobre o lírico. Mas esses dois elementos não são tão distantes assim.
Os distintos cavalheiros e damas presentes terão, agora, a oportunidade de apreciar um grande pequeno espetáculo: um desfile, em arquipélago, de haikais.
Todos os micro poemas são, igualmente candidatos ao prêmio luxo e ao troféu oriiginalidade.
Com os senhores, Bashô e seus descendentes.

pobre sim pobre pobre
a mais pobre das províncias
mas sinta essa brisa
(Issa, sec. XVIII)

de mim
inscrevam aqui
adorava haikai e caqui
(Shiki, séc. XIX)

A aparição dessas caras na multidão:
Pétalas num galho úmido, escuro.
(Ezra Pound, séc. XX)

Folhinhas.
Linhas. Zibelinas só
zinhas.
(Maiakowski, trad. Haroldo de Campos)

Lava, escorre e agita
A areia. E enfim, na bateia,
Fica uma pepita.
(Guilherme de Almeida)

Stop.
A vida parou.
Ou foi o automóvel?
(Carlos Drummond de Andrade)

Fugaz como o instante em que a miro,
une o céu à terra
e a seu pranto de ouro, meu suspiro.
(José Juan Tablada)
Chove.
Em que ontem,
Em que pátios de Cartago,
Cai também esta chuva?
(Jorge Luis Borges)

A noite
me pinga uma estrela no olho
e passa.
(Paulo Leminski)

primavera não nos deixe
pássaros choram
e há lágrimas no olho do peixe.
(Bashô)

dia de finados.
Do jeito que estão
dedico as flores.
(Bashô)

casca oca
a cigarra
cantou-se toda
(Bashô)

velha lagoa
o sapo salta
- o som da água
(Bashô)


(Texto de Paulo Leminski, extraído do livro “VIDA”)

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